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TANTO MAR - ARQUITECTURA EM DERIVAçãO | PARTE 1FILIPA COIMBRA2014-04-15(...) Ah seja como for, seja por onde for, partir! Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar. Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstrata, Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas, Levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais! Ir, ir, ir, ir de vez! (...) Álvaro de Campos, Ode Marítima.[1] A História não se repete, ainda bem, no entanto, a nossa, a dos portugueses, está repleta de partidas, facto que não parece espantoso num país já com tantos séculos onde, portanto, a palavra «repleta» cabe em tantas outras coisas. Ainda assim, não terá sido à toa que tenhamos sentido a necessidade de encontrar um vocábulo que exprimisse um sentimento tão enraizado quanto a saudade. No que respeita às motivações que promovem estas partidas, a heterogeneidade é grande mas, deixemos de lado descobridores, colonizadores, colonos, «o salto», a guerra colonial, uma vez que no horizonte de Tanto Mar estão partidas mais recentes e é a começar nelas que nasce a necessidade e o interesse de – tal como nas outras – receber notícias.[Fig. 1] Estes nossos correspondentes são agora os arquitectos portugueses que estão lá fora. Na realidade, a correspondência é mesmo o veículo que põe em marcha este projecto, daí que lhe tenha sido reservado um lugar de destaque na exposição, não apenas por ser um importante registo documental, mas atendendo também à sua vertente humana e relacional, particularmente importante neste projecto.[Fig. 2] Tanto Mar é o resultado do desafio lançado pelo ateliermob, através de um open call, aos arquitectos Portugueses Fora de Portugal comprometidos com projectos de envolvimento social, que a partir da selecção das muitas candidaturas espontâneas, seleccionou 33 projectos que estão a ser agora apresentados na Garagem Sul, no CCB, parceiro do projecto, a decorrer até dia 20 de Julho.[Fig. 3] O título, Tanto Mar, desde logo sugere uma certa ideia de errância, de fluxo, de deriva e, simultaneamente, uma pulsão de liberdade e de oportunidade. Olhando a sinalética da exposição – nas linhas em zigue-zague do chão que delimitam e organizam os projectos por temas – somos tentados a conferir-lhes um certo sentido estético próximo ao movimento e à cadência das ondas. Ao fundo e em grandes dimensões, um mapa azul representativo dos projectos consoante a sua localização geográfica, denuncia também uma certa familiaridade com a cartografia marítima que foi outrora explorada e reescrita pelos portugueses.[Fig. 4] Aqui, também os arquitectos procuram aliar os seus «mapas» – um projecto planificado totalizado e baseado na experiência técnica e disciplinar – aos «itinerários» – a operatividade discursiva baseada na experiência – que a comunidade tem do espaço, um espaço vivido.[2] Compreendendo que o espaço afecta as relações sociais e que é vivido de forma diferenciada pelos seus actores, torna-se claro que o espaço construído terá de resultar de um aprofundamento e envolvimento destas mesmas relações entre arquitectos e comunidades, e de noções como co-participação, cooperação ou correlação. Estamos, pois, perante uma abordagem da arquitectura redefinida, derivada, a partir do prefixo “CO-”.[3] No sentido linguístico, derivação, significa sempre acréscimo, junção; no sentido matemático, está intimamente relacionada com a taxa de variação instantânea de uma função; a nível semântico, derivação, pode ainda ser entendida como desvio quando falamos de uma embarcação no mar; ou como mediação entre dois pontos de um circuito eléctrico fechado, se nos ativermos aos procedimentos eléctricos. Uma arquitectura de derivação em prefixo “CO-”, à semelhança do que ocorre nos processos linguísticos, é sempre uma transformação, neste caso, da realidade concreta, social e disciplinar da arquitectura, porque um “CO-” é sempre mais do que era isolado – até porque, linguisticamente este morfema não existe na sua forma isolada – e dessa junção e ligação forma-se uma outra palavra, um outro entendimento. Derivada e projectada a partir da outra, parece agora mais amparada, mais sustentada. Até há bem pouco tempo, a prefixação na gramática portuguesa foi um processo de formação de palavras complexo devido às pequenas variações e excepções das suas regras, questão que o Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico procurou simplificar e normalizar. Desdobrados, aglutinados, justapostos com hífen, justapostos sem hífen: a diversidade é grande e dessa diversidade resultam, conceptualmente, diferentes níveis de significação. Sem queremos entrar demasiado no domínio das questões linguísticas que não são, de facto, o nosso enfoque, concentremo-nos apenas na sua aparência, na visualidade inerente destas articulações para com elas fazermos um paralelismo com a heterogeneidade dos projectos aqui apresentados. Por exemplo, visualmente, a prefixação com hífen parece indicar-nos uma ligação de alguma autonomia (por exemplo: co-projecto), que já será encurtada na simples justaposição (por exemplo: colaboração). Já a aglutinação converte-se numa fusão mais misturada (por-exemplo: coabitar) e o desdobramento assume-se mais como uma extensão-ligação que resulta de uma espécie de mediação (por exemplo: cooperação, ou correspondência). Aquilo que queremos aqui dizer é que um “Co-“ caracteriza-se também por essa elasticidade, por essa plasticidade e adaptabilidade, da mesma forma que estes projectos de arquitectura co-participada. Falamos, pois, de um território híbrido e móvel cuja mistura, mais ou menos, fluída produz vários cambiantes num mesmo projecto, mediante a combinatória das suas várias fases, dos seus agentes e ritmos de entrosamento. [Fig. 5] Sem cair nos exageros de uma opressiva categorização – contraditória com a capacidade de transmutação onde recai a criatividade e vitalidade destas práticas – é possível ver, por exemplo, um “CO- com hífen” no projecto de José Osório Lobato, Transvaal (Holanda) num bairro onde se procura integrar a construção de novos edifícios habitacionais com a reabilitação dos existentes, partindo de uma articulação próxima com a associação de moradores. Inventar(iar) as Roças em São Tomé e Príncipe (Duarte Pape e Rodrigo Rebelo de Andrade) consiste em projectos multidisciplinares que visam revitalizar as roças de cacau e o seu património arquitectónico, promovendo, para tal, a investigação e a sensibilização junto das comunidades. Em ambos os projectos é peremptório o chamamento à participação de todos, ao mesmo tempo que as partes conservam uma certa autonomia no desenrolar dos projectos. Quanto a um “CO-” aglutinado, podemos vê-lo no projecto A Pequena Califórnia (Quénia) coordenado pela Arq. Joana Cameira, através do Conselho de Refugiados Norueguês. A fusão e imbricação acompanha todas as fases do projecto de construção de uma das secções criadas num dos maiores campos de refugiados do mundo, que vai desde o desenho participado das unidades habitacionais; ao recrutamento e formação técnica; à criação das condições necessárias ao fabrico dos materiais; ao fabrico dos materiais pela comunidade; à construção participada, até à mediação de conflitos. Temos um “CO-“ que se desdobra no projecto Incremental Housing (Índia) que conta com a participação do Arq. Filipe Balestra, que a partir da consulta popular cria 3 protótipos habitacionais modulares que irão promover a autonomia e evolução construtiva do bairro no futuro, assim como contribuir para a organização e ordenação da envolvente. No projecto Complexo do Alemão no Brasil (Nuno André Patrício e Linda Cerdeira) podemos intuir uma justaposição de um prefixo “CO-“. Este é um projecto que procura melhorar e resolver algumas dificuldades técnicas e organizacionais dos projectos de espontaneidade da favela, estando os técnicos, para tal, fortemente empenhados em apreender os reais problemas de quem habita a favela, procurando responder tecnicamente às suas propostas, num quadro de entendimento próximo ao que já havia sido defendido pelo arquitecto inglês, John Turner.[4] A referência a este último é uma das tantas possíveis no enquadramento destas práticas. Aliás, como é, justamente, referido pelos curadores, numa perspectiva da própria História da Arquitectura, a etiqueta «arquitectura social» não é uma invenção dos nossos tempos conturbados mas, a verdade é que ela ganha maior visibilidade em tempos de emergência, de ruptura e de mudança. Podemos olhar também para outros protagonistas e recuar até à agitação da década de 1960 e ao legado inspirador e agitador do Direito à Cidade de Henri Lefebvre; à afirmação política da prática da arquitectura pelo envolvimento colectivo, discutida por Giancarlo de Carlo; a “architecture without architects” e os espaços construído sem pedigreed de Bernard Rudofsky; a favela enquanto investimento social de Carlos Nelson Santos em Brás de Pina; ou as operações e intenções do S.A.A.L (Serviço Ambulatório de Apoio Local) em Portugal. A verdade é que encontramos pontos de contacto entre alguns desses caminhos trilhados e estes, mais recentes, aqui apresentados. É, então, chegada a altura de recorrer a mais um prefixo: o “RE-”. A evolução da humanidade é feita destes «re»pensar, «re»formular, deste «re»avaliar, «re»elaborar e «re-humanizar». Não são revivalismos de uma visão circular da História, é o seu «rebusco» – essa metáfora aplicada pelo arquitecto Joaquim Moreno a respeito dos desafios que a disciplina enfrenta terminada a época de abundância.[5] O prefixo “RE-” que não significa invariavelmente uma repetição, um decalque. Paradoxalmente, podemos ver na sua dinâmica de movimento, um apuramento ou aperfeiçoamento, uma modelação que derivam da experiência, como tal, torna-se «re»novador e «re»configurante.[6] Mas os projectos aqui em foco, diferentes dos movimentos sociais em arquitectura dos finais da década de 1960, assumem-se enquanto movimentos descentralizados, heterogéneos e, nalguns casos, espontâneos. Accionados pelo «cosmopolitismo vernacular» que caracteriza a época actual, estes arquitectos desembaraçam-se de alguns formalismos e protocolos, agindo muito mais directamente. Portanto, não se tratará tanto de uma mobilização pelo engajamento político, como no passado, mas de plataformas e reagenciamentos de afinidades de vários tipos, gerados num quadro comunitário de informalidade. É uma arquitectura que age sem fazer alarde, uma vez que, gerada na era do networking, pratica-o de forma quase inata, adaptada, sem que disso se aperceba. Articulando-se directamente com os intermediários, é nessa auto-suficiência e desburocratização que reside parte da sua leveza e da sua força. [Esta é a primeira parte do artigo Tanto Mar - Arquitectura em DERIVAção sobre a exposição Tanto Mar. Portugueses Fora de Portugal, patente na Garagem Sul do CCB, Lisboa. A segunda parte será publicada no próximo mês] :::: Filipa Coimbra é licenciada em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e mestre em Crítica de Arte e Arquitectura pelo Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. :::: NOTAS [1] CAMPOS Álvaro de, Ode Marítima (1959), Relógio D\'Água, Lisboa, 2013. [2] Ver CERTEAU Michel de, The Practice of Everyday Life, University of California Press, Berkeley/ Los Angeles, 1984, p. 119. [3] Uma derivação que consiste na junção de um prefixo a um radical, ou seja, à palavra primitiva é anteposto um morfema que irá modificar, ou reforçar o sentido da palavra. [4] Indo um pouco de encontro às considerações desenvolvidas pelo arquitecto inglês, John Turner, que em meados da década de 1950, a partir da experiência de desenvolvimento de um projecto urbanístico comunitário no Peru, passou a defender que a experiência dos que habitam os espaços é fundamental para o trabalho do arquitecto, passando este a ter um papel de intervenção mínimo, apenas para regular formas e na resolução de problemas técnicos. A participação da comunidade é vital para que as cidades funcionem e muito pode ser aprendido com os processos de auto-construção. A experiência e know-how da comunidade são valorizados, reinvertendo a tendência dominante da preponderância do conhecimento técnico e disciplinar sobre um outro de natureza mais espontânea. [5] Ver MORENO Joaquim, Sobre-qualificação e Rebusco, Artecapital, 2013-01-08. URL: http://www.artecapital.net/arq_des-92-sobre-qualificacao-e-rebusco [6] O prefixo “RE-“ pode geralmente, ter três entendimentos possíveis, no sentido de repetição, reforço, e de recuo até ao ponto de partida. :::: [a autora escreve de acordo com a antiga ortografia] |