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MANUTENÇÃO DE MEMÓRIA: ALGUNS PENSAMENTOS SOBRE MEMóRIA PúBLICA BERLIM, LAJEDOS E LISBOA.ROGER MEINTJES2006-11-16Como é que nós, que vivemos em comunidades de grande diversidade, continuamos a lembrar eventos significativos do nosso passado recente, e como é que as estratégias que adoptamos para esse processo de lembrar afecta a própria memória? Eis as duas questões principais que consideramos neste texto. Estas por sua vez, como grande parte das grandes questões, provocarão outras. Os locais, Berlim, Lajedos e Lisboa não oferecem soluções simples ou respostas imediatas à complexidade do problema da memória pública. Pelo contrário, contemplo-os como um conjunto de exemplos instructivos que realçam uma variedade de abordagens a problemas semelhantes. Em alguns casos as noções de memória pública são explícitas e intencionais, enquanto que noutros, a exteriorização para a esfera pública é menos óbvia, ficando a dita intervenção indefenidamente situada entre o privado e o público. Os vários exemplos demonstram como o conceito de memória pública está constantemente a ser re-negociado, mesmo que muitas vezes o consideremos um ponto final ou uma materialização estática da memória colectiva. O nosso envolvimento com o evento e com a sua representação é sempre um processo continuo e dinâmico: ora através da diversidade de abordagens ou experimentação continua em torno da forma como lembrar um evento específico, ora através da utilização de uma abordagem que privilegia o processo, ora através da “colagem” de extensões não antecipadas depois da intervenção estar ‘completa’. Na sua forma mais feliz, a memória pública serve de catalisador do nosso envolvimento com aquilo que se pretende lembrar. Um lugar ou processo que ajuda a focar os nossos pensamentos num evento ou assunto, permitindo ainda espaço para a evolução do nosso entendimento, da nossa resposta e instigando-nos a construir e trocar – uma plataforma. Este tipo de memória pública representa memória colectiva como algo que está em permanente estado de renovação e como tal adopta estratégias que nos permitem um envolvimento nesses termos. Neste sentido a memória pública pode ser pensada como uma ferramenta para trabalhar o passado no presente. O que se segue é uma série de reflexões pessoais acumuladas ao longo do tempo durante o meu envolvimento com estes três locais. A minha intenção é utilizar estes três exemplos para contribuir para um debate que penso estar ainda muito pouco desenvolvido em Portugal, nomeadamente memória pública e colonialismo. Já que uma nova geração de artistas começa a explorar as suas raízes/rotas coloniais/colonizadas, parece-me oportuno reflectir sobre a construção da memória pública e qual o potencial para o indivíduo ou colectivo tomar parte neste processo. Uma visita recente a Berlim (Alemanha), a minha primeira em dez anos, uma séria de estadas em Lajedos (Cabo Verde) no decorrer do último ano, e a minha relação continua com Lisboa serviram de dispositivo de referência para estes pensamentos: Durante as minhas movimentações por Berlim nos meados da década de noventa, cruzei-me frequentemente com memoriais discretos e inesperados – um parque, um lote vazio mas cuidado, uma placa na parede de um edifício - são as que melhor recordo. Estas ténues intervenções interrompiam a continuidade do quotidiano citadino com lembranças do seu passado Nacional Socialista. De um modo geral tratavam-se de intervenções “site-specific” com pequenas anotações - “Neste local, no dia ….”. Estas funcionavam como não-intervenções - a recusa de reconstruir num terreno específico depois da demolição de um edifício assumindo publicamente a sua ausência. Eram tambem intervenções sem registo de autor – actos simbólicos de lembrança destituídos de voz e da presença do autor. Anti-monumentos que existiam num registo à escala doméstica. Estes lugares não se ligavam de outra forma específica que não fossem as suas referências históricas comuns. O facto de podermos encontrar estas intervenções, quase por acidente, no nosso caminho de A para B, fazia com que estes memoriais tivessem uma espécie de intensidade especial. Não havia custo de entrada ou seguranças de serviço, e na verdade por vezes era o lado sem sentido do espaço mundano que alertava a nossa curiosidade. Uma presença estranha que de alguma forma parecia desligada dos espaços em sua volta. Depois de ler aquilo que geralmente eram curtos textos numa placa ou pedra, a pessoa sentia-se envolvida num processo de co-autoria – reconstruindo – arquitectando uma imagem imaginária daquilo que estava ausente. Esta reacção era intuitiva e nunca me senti manipulado ou coreografado. A surpresa do encontro e resultante falta de preparacão para o mesmo permitiam que estas micro-histórias se intersectassem com o presente de maneira que geralmente não são possíveis com encontros mais planeados com o passado. Estas surpresas interrompiam e re-direccionavam pensamentos privados com outro tempo, arrancando-nos do quotidiano e forçando-nos a re-avaliar o presente. A ausência de qualquer tentativa de representação ocupava o público com o evento relatado de forma directa e primária. Os nossos pensamentos não se confundiam com detalhes externos como a intencionalidade do autor ou a escolha da representação adequada. Vozes secundárias como estas só existiam na sua ausência, ausência essa que alguns podem questionar, mas que neste caso acredito ser perfeitamente adequada. A simplicidade da intervenção e a especificidade do lugar+evento permitiam que se reflectisse com precisão. Esta escolha de micro-histórias, os pequenos eventos narrativos que constituem o grande todo, ajudavam a construir uma narrativa personalizada e inclusiva, assim como permitiam reflectir sobre a escala das mesmas no âmbito da diversidade. Em retrospectiva é a presença colectiva destas intervenções que melhor recordo. Penso nelas como memorial cumulativo ou distribuído, imaginado ao longo do tempo, nos meus vários contactos com aquela cidade. É esta memória que continua a servir de mediador da minha relação com a cidade dez anos mais tarde durante esta minha visita recente. Agora, em 2006, a discussão durante o voo para Berlim foi sobre o Holocaust Tower de Daniel Libeskind, o Holocaust Memorial de Peter Eisaman e a Empty Library de Mischa Ullman. Estas novas intervenções, que referenciam eventos históricos do mesmo período são projectos autoriais assumidos que parecem estar a moldar a nova estética de memória pública – momumental, minimal e monocromática. O foco da questão, como estratégia para assumir e lembrar o passado, deslocou-se do conceito de ausência para o de presença. O que é interessante sobre estas novas intervenções é que não registam sentido de descontinuidade com o seu contexto. Enquanto as intervenções de que eu me lembrava das visitas anteriores resistiam a assimilação no seu próprio contexto, a presença destas novas intervenções quase parecia lógica, uma parte integrante do panorama emergente do Berlim do pós-muro. A minha visita ao Holocaust Memorial coincidiu com a passagem anual da Cristopher Street Day Parade (com o fedor doce a cerveja e o ruído surdo a ‘House’) e a Empty Library estava rodeada por United Buddy Bears Project (um projecto global de pintura de ursos reminiscente da Cow Parade que recentemente passou por Lisboa). Em ambos os casos, estas outras presenças pareciam mais uma sobreposição do que intrusão. A ruptura foi substituída por continuidade, a continuidade do espectáculo. Esta nova definição de memória pública parece previsível e encenada. Algo que se adiciona à lista de atracções turísticas como o Checkpoint Charlie e o Pergamon Museum. Ao contrário das minhas experiências anteriores, onde os pensamentos se focavam claramente nos eventos históricos específicos, agora, quando olhava e entrava nestas intervenções, os meus pensamentos focavam maioritariamente decisões de autoria, materialidade, reacções do público e o contexto em geral. Não me surpreendeu que, ao procurar rapidamente na web o Holocaust Memorial (oficialmente conhecido como o Memorial to the Murdered Jews of Europe) se encontrem referências extensas ao processo que antecipou o projecto da encomenda, à polémica que acompanhou a sua construção, às especificações arquitectónicas e ao arquitecto em si. O foco das nossas atenções passou a ser a intervenção e não a referência ao evento histórico em si. Talvez este foco se desloque de novo com o tempo conforme nos habituamos à sua presença e conforme a nossa relação vai mudando de novo. Revendo estas duas visitas à cidade, torna-se evidente que a relação entre estas intervenções e as suas referências históricas paira num equilíbrio delicado. Na maior parte dos casos as intervenções de memória pública servem como identificação de lugares onde os indíviduos/as e as comunidades se permitem lembrar e ocupar do passado. A natureza da estrutura desta ocupação varia de lugar para lugar. Nalguns casos funciona como um meio para atingir um fim e noutros funciona como o próprio objectivo. O acrescento deste novo conteúdo pode aumentar ou diminuir a nossa percepção do evento original. Nunca é neutro ou ausente. Aqueles que promoveram os primeiros projectos de memória pública a que me referi escolheram usar estratégias anti-representacionais. Não querendo isto dizer que sejam menos intervencionistas. A sua eficiência deve-se ao alto grau de personalização da experiência e especificidade da referência – que permitia uma focagem muito nítida. As novas experiências de multidão - estima-se que 3,5 milhões de pessoas visitaram o Holocaust Memorial em Berlim durante o seu primeiro ano de abertura ao público – parecem-se mais com exercícios de consumo em massa do produto que neste caso é a história. A integridade do indivíduo/a e do evento perdem-se nesta deslocação para a monumentalidade e atracção pública. Dirijo agora os meus pensamentos para a metade norte da ilha de Santo Antão em Cabo Verde. Uma paisagem vulcânica ressequida, rochedos vermelhos e negros distribuídos pelo terreno árido. Seria difícil imaginar um lugar mais distante da nova Berlim. O Sahel no meio do Oceano Atlântico. Tal como o resto do Sahel, a ilha sofre de precipitação decrescente e aumento de desertificacão. A qualidade do solo é pobre e só menos de 10% da ilha é cultivável. Os poucos aldeamentos que sobrevivem na aridez da zona norte são compostos por famílias cujos rendimentos familiares se comparam com os países mais pobres do mundo. Menos de $2 por dia é a média em Lajedos. Durante a minha estadia mais recente, o director da escola local mostrou-se preocupado com o iminente fim do PAM (Programa Alimentar Mundial) programa de alimentação nas escolas. As crianças que frequentavam as escolas, explicou ele, recebem uma refeição quente à hora do almoço, e para muitas é a única refeição durante todo o dia e a única razão pela qual continuam a frequentar a escola. A previsão do director inclui uma descida significativa dos níveis de frequência escolar, se estes planos se concretizassem. Este tambem referiu a forma como a fome afecta a capacidade de concentração dos alunos durante as aulas. Lajedos estabeleceu-se como comunidade na segunda metade do século dezanove. Os primeiros colonos inventaram um sistema de condutas e comportas para canalizar a água vinda de uma nascente próxima até aos terrenos, e desta maneira transformaram as terras, que previamente só eram utilizadas para o pasto de cabras, num pequeno oásis. Os terrenos ordenados em socalco, que maioritariamente produzem cana-de-açúcar, contrastam fortemente com as montanhas áridas que os rodeiam. A população actual descende do primeiro colono, a cujos descendentes, três ou quatro famílias, pertencem a maioria das terras, e respectivos trabalhadores. Pouco se alterou na hierarquia social no decorrer deste último século – um trabalhador ainda necessita de autorização do dono da terra para construir uma casa na sua propriedade (nunca podendo os trabalhadores ser os donos da terra), e criando uma óbvia dependência de trabalho que se presta a potenciais abusos. O meu envolvimento com Lajedos fez-se através de uma ONG local, o Atelier Mar. O Atelier Mar está activo na comunidade há mais de 15 anos, tendo iniciado uma grande variedade de projectos que incluem a construção de um cemitério, a construção de uma escola primária utilizando técnicas de construção experimentais, uma instalação de energia solar e sistema de agricultura gota-a-gota. Juntos estamos a planear um projecto de desenvolvimento que integra um número de serviços e recursos num centro multi-usos para encorajar os jovens a activar mudanças na comunidade e providenciar algumas infra-estruturas muito necessárias. O centro tambem servirá como ponto de contacto para visitantes. Durante a minha segunda estadia em Lajedos, trabalhei com um grupo de professores/estudantes, oriundos da ilha vizinha São Vicente, numa série de entrevistas à comunidade em torno da sua história oral. O conjunto das entrevistas constituem uma espécie de esqueleto histórico para o projecto, que nos ajudará a orientar os pensamentos conforme progredirmos no trabalho. Um tema recorrente durante muitas das entrevistas foi a referência a um incidente nos anos quarenta, quando um navio conhecido na tradição oral local como “John”, deu à costa uns 40km a norte na direcção do Tarrafal. A história de “John” varia um pouco de pessoa para pessoa e de uma maneira geral os mais jovens sentiam-se menos inibidos de relembar os eventos com detalhes mais gráficos. O naufrágio de “John” ocorreu durante uma das fomes periódicas de Cabo Verde. É significativo o facto de que esta fome é lembrada por aqueles que a viveram como “ O tempo de John”. John era um navio de carga americano repleto de milho que havia pedido autorização ao governo de Salazar para descarregar esse milho em Cabo Verde. O governo de Salazar recusou. Muitos acreditam que esta recusa levou o comandante do navio a deixá-lo encalhar prepositadamente na costa rochosa de Santo Antão assegurando assim a distribuição da carga entre aqueles que mais necessitavam. A veracidade histórica desta versão dos eventos é pouco segura. O que é certo é que não existem outras explicações lógicas para esta ocorrência extraordinária. O navio naufragou numa das zonas menos acessíveis e menos habitáveis da região, um trecho ventoso e rochoso de uma costa com muitos quilómetros sem sombra nem água potável. Conforme a notícia do naufrágio se espalhou pela ilha assim as pessoas iniciaram caminhadas para lá chegar, na esperança de aí encontrar comida. Devido à inacessabilidade do local e consequente dificuldade de transportar o milho, criou-se neste local uma comunidade e micro-economia – marinheiros e ilhéus uniram-se num elo de dependência mútua, vivendo como náufragos do conteúdo da carga do navio. Os marinheiros estabeleceram-se numa pequena caverna próximo do navio e trocavam uma lata de milho por uma lata de água. Os ilhéus faziam a árdua viagem em busca de água potável como forma de adquirir comida. As condições de vida no local eram tão severas, que os marinheiros se propuseram logo pagar um couscous (bolo de milho local cozido a vapor) por cada cadáver enterrado, uma oferta que foi imediatamente seguida de uma provisão estipulando que o cadáver teria que estar morto há pelo menos 24 horas para permitir autenticação. Não houve ninguém com quem falámos em Lajedos que nos dissesse ao certo durante quantos anos esta trágica comunidade subsistiu. Hoje o local e a área circundante encontram-se de novo desertos. A nossa equipa decidiu que seria importante visitar o local para melhor entender o evento. Partimos de manhã cedo para evitar o pior do calor do dia. Caminhando quase em corrida, e partindo da aldeia piscatória mais próxima, levou-nos 8 horas para lá chegar e voltar. Conforme caminhamos ao longo da costa, o único sinal de vida humana eram as garrafas de plástico de água que o mar faz dar à costa, e que o sol de muitos anos torna leitosas. Não vimos ninguém. Era difícil prever o que se iria encontrar no local. Todos os que haviam contado a história descreviam meramente os eventos de então. Ninguém havia descrito as condições no local, excepto o facto de que ainda se avistava o resto do navio. Conforme nos aproximamos, os primeiros sinais de presença foram os restos de pequenas casas de quatro paredes. As paredes tinham sido construídas por empilhamento de pedras e encontravam-se em variados estados de decomposição. Ao contrário das casas de pedra típicas de Cabo Verde, em que cada pedra é cuidadosamente trabalhada para se ligar à próxima, estas pedras não tinham sido tocadas, revelando uma tentativa desesperada de criar um abrigo numa paisagem inóspita. Seria fácil de não as identificar devido ao facto de que se confundiam com o resto das rochas espalhadas pela paisagem, com as mesmas cores e texturas misturadas no sol do meio dia. Pouco resta do John propriamente dito. Alguns fragmentos enferrugados nas poças de água e uma imagem momentânea do casco que por vezes se avistava nos entremeios das ondas. Era notável somente pela sua banalidade. A escala do evento na memória colectiva encolhia os seus restos físicos. Por mais que tentasse não conseguia estabelecer uma relação significativa entre os meus conhecimentos de John e o próprio John. A juxtaposição dos dois pareciam destituídos de sentido e incompatíveis. Vagueamos pelo terreno procurando pistas que pudessem ajudar a construir uma imagem mais completa dos eventos. A caverna onde os marinheiros se haviam instalado parecia mais uma cova do que uma caverna, um bunker natural que os poderia ter protegido dos elementos e de qualquer movimento desesperado da parte da população local. Parecia um local de refúgio, o que aparentemente contradizia a intencionalidade de encalhar o navio. O cemitério, localizado numa pequena encosta, era dispropocionalmente grande. As paredes do seu perímetro formavam um rectângulo quase perfeito cujas sombras muito defenidas se desenhavam na paisagem, era o único vestígio claro de presença humana. Entre os rochedos espalhados pela paisagem situava-se uma estrutura aparentemente pouco interessante. Um pilão e almofariz feitos de duas grandes pedras negras. Havia ainda um pequeno muro construído de um dos lados para proteger do vento aquilo que se moia. As duas pedras principais estavam moídas de tanto uso. Ao contrário das casas destruídas que se pareciam em breve fundir com a paisagem de onde tinham sido extraídas, este objecto parecia preservado e até ainda em uso. O nosso guia Da Rocha confirmou que os pescadores locais passavam por aqui periodicamente nas suas expedições piscatórias e eram responsáveis pela sua conservação. Ao contrário dos outros vestígios desta comunidade tão momentânea, este objecto pertencia ao passado e ao presente. Um memorial funcional do evento que aqui se mantinha vivo por uma tradição oral dinâmica. Para mim, o poder único deste artefacto de memória pública não derivava só da sua fabricação original mas também da sua manutenção contínua providenciada voluntariamente pelos pescadores que passavam – o Estado não havia feito esforços para intervir neste local. Esta participação e apropriação da história, que funciona como a própria história oral imbuiu o artefacto de uma integridade especial. É um testamento exacto àqueles que tinham feito a caminhada inicial até ao local e uma presença persistente e duradoira em volta do qual os visitantes como nós podiam focar os seus pensamentos. As pessoas da nossa equipa tiveram oportunidade de se sentarem junto do engenho, rolando docemente a grande pedra redonda para a frente e para trás sobre a superfície lisa da outra pedra. O som surdo e quase metálico da rocha a moer contra rocha era particularmente evocativo. Ficamos de pé num círculo em silêncio em volta do engenho aguardando a nossa vez, escutando, observando, cada um com os seus pensamentos íntimos. Mais tarde ao descrever a visita ao director do Atelier Mar e ao discutir as diferentes formas de narrativa histórica que o nosso projecto poderia adoptar, ele apontou a necessidade de trazer para a história da fome em Cabo Verde um foco alternativo. Para o Leão, era importante evitar a tendência de construir narrativas vitimizadas sobre a história da fome. Para ele o espírito caboverdiano é de sobrevivência e portanto qualquer narrativa deste género necessitaria de acentuar esta perspectiva. Para ilustrar esta ideia ele relembrou a história dum homem vindo duma comunidade próxima de Lajedos que havia guardado uma pequena garrafa cheia de milho do navio John. Quando chegaram as chuvas plantou o milho nas suas terras e mais tarde colheu-o. Desta colheita guardou de novo uma pequena quantidade para repetir o processo quando viessem novas chuvas. O homem tinha continuado esta prática ano após ano. Nas suas mãos o milho do John havia-se transformado num artefacto vivo, algo que simultaneamente sustentava a vida e a memória. A minha breve exposição à história do John ajudou a formular uma interessante contra-referência para pensar os impulsos contemporâneos da comodificação da história e do “outsourcing” da construção de memória. Com o John, as intervenções eram muito simples, sucintamente adicionadas e aludiam a um forte sentido de propriedade dum passado colectivo. A memória pública era algo que tinha nascido espontaneamente do evento através do envolvimento da comunidade. Esta participação no fazer e re-fazer da história, um processo cíclico contínuo, imbuiu a história de John de um significado vivo especial. John é muito mais do que o mero evento e as suas resultantes representações. É um tecido de textura densa composto de uma tradição oral e de cultura material e orgânica. É Lisboa – lembro um amigo moçambicano lamentando a oportunidade perdida por Portugal quando da inauguração, em meados dos anos 90, do monumento erguido em Bélem aos soldados caídos na guerra colonial. Ele via nisso um possível momento de reconhecimento a todos os que caíram durante essas guerras – Guineenses, Cabo Verdianos, Moçambicanos, Angolanos e Portugueses – uma chance de re-direccionar a memória. Este pensamento ainda me ocupa cada vez que passo por esse lugar. Obrigado Anwar! Roger Meintjes Artista e Professor |