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FORA DA CIDADE. ARTE E ARQUITECTURA E LUGARLAURA CASTRO2019-04-16
Diante do projecto Desencaminharte, definido como arte aplicada ao lugar, foi impossível não recordar as marcações pré-históricas e os vestígios arqueológicos na paisagem que Lucy Lippard tão bem comparou com os gestos da arte contemporânea, num dos seus livros [1]. Através da palavra overlay, que inscreve no respectivo título, Lippard chamou a atenção para a sobreposição de estratos: o do tempo humano sobre o tempo geológico; o da acção humana sobre a natureza; o da religiosidade cristã sobre o paganismo e o dos actos do cobrir e da fertilidade, implícitos em qualquer relação do homem com o território. A referência era inevitável diante das interferências entre arte, arquitectura e lugar que aquele projecto envolve, ou seja, diante da paisagem polissémica que nele se constrói. Ao adoptar o lema de arte aplicada ao lugar, os mentores do projecto parecem ter-se afastado estrategicamente do dogmatismo site-specific e, em vez disso, aproximaram-se de todas as declinações associadas às práticas in situ, formuladas como site adjusted, site oriented, site conditioned/determined, site dominant [2]. Com um título herdado da primeira edição, ocorrida em 2017, mas num formato completamente diferente, foi recentemente apresentado o projecto Desencaminharte’18 – Arte Aplicada ao Lugar, na Casa das Artes de Arcos de Valdevez, um dos municípios que integram a Comunidade Intermunicipal do Alto Minho. A partir de Abril, ficaram disponíveis as dez intervenções na paisagem, cuja instalação decorreu entre Novembro de 2018 e 30 de Março de 2019. No texto de apresentação do livro [3], que contém extensa documentação sobre cada intervenção e sobre cada lugar, o projecto é definido como assente numa combinação entre novas referências culturais de arte pública em territórios de baixa densidade e a valorização e reinterpretação, nesse contexto, das marcas identitárias do património cultural e natural do Alto Minho. Representa, por isso, um desvio no sentido de uma descentralização da criação artística nacional, mas também de uma valorização cultural e turística das periferias naturais e rurais. Da vasta equipa [4] responsável pela concepção e pela produção desta edição fazem parte arquitectos e artistas que implementaram as propostas de Fernanda Fragateiro, Dalila Gonçalves, André Banha, João Mendes Ribeiro, Gabriela Albergaria e dos ateliers FAHR 021.3, depA, STILL urban design + Miguel Seabra, Pablo Pita e Barão-Hutter. Adivinha-se a complexidade metodológica e operacional do projecto, na intersecção entre o interesse dos municípios em intervenções permanentes e até de sentido funcional, a linha curadorial que visava “leitores de paisagem” e a resposta de cada autor, na sua interpretação de um lugar pré-determinado pelos municípios com o acordo dos programadores. A complexidade foi igualmente a da gestão do projecto, com a exigência de estudos prévios para cada intervenção, a sua aprovação por um número considerável de entidades e tutelas do território, e a produção de peças tipológica e materialmente muito diversas que requisitaram, tanto a colaboração de fábricas como a de artesãos locais. Neste momento em que tudo está visitável, clarifica-se melhor a genealogia em que se inscreve o projecto. Mais remotamente, poderíamos evocar a land art e a environmental art, vindas dos anos 60 e 70 do século passado, os parques de escultura ao ar livre, desenvolvidos a partir dos meados desse século, e os circuitos de arte na paisagem, particularmente numerosos a partir do final da década de 70. (Para não falar das propostas de ressonância modernista, como as grandes estruturas em bronze criadas por Henry Moore para os espaços rurais de Inglaterra, polidas pelos animais e rebanhos em deslocação nessas áreas). Em termos de afinidades mais recentes, poderíamos mencionar as instalações artísticas no mundo não urbano, seja o da periferia, o das pequenas comunidades, o do território agrícola, o dos espaços florestais, o das auto-estradas ou o das grandes estruturas industriais, como barragens, centrais de produção de energia ou grandes complexos fabris desactivados. É que, nem a land art com as implantações em espaços inóspitos, nem as caminhadas de Richard Long ou de Hamish Fulton, terão quebrado definitivamente o que parece ser a condição essencialmente urbana do fenómeno artístico. Tema a merecer debate lançado, aliás, pelo próprio Fulton quando afirma: The art object is for urban people, came out of an urban society and is viewed in an urban setting […] [5] Para seguir este itinerário que percorre os concelhos de Arcos de Valdevez, Caminha, Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Ponte da Barca, Ponte de Lima, Valença, Viana do Castelo e Vila Nova de Cerveira, serão necessários pelo menos dois dias, durante os quais a procura das propostas artísticas corresponde à descoberta da paisagem e do património natural, cultural arquitectónico e imaterial. Começo por referir a mais narrativa e declaradamente funcional das intervenções, a do atelier Barão Hutter (Ivo Barão e Peter Hutter) que revisita uma oferenda ritual aos frades do Mosteiro de Sanfins e cria uma série de artefactos destinados à confecção dos animais oferecidos. A peça, no seu conjunto, pode ser activada pela recuperação simbólica dessa tradição e pelo seu carácter gregário. O abrir do solo e a exploração da morfologia do lugar estão no centro de duas intervenções com resultados bem diferentes: um rasgo ameno e um sulco violento. Gabriela Albergaria optou por um rasgo no solo de um parque, em Cerveira, revestiu-o de pedras de granito de assentamento artesanal, gerando um espaço híbrido, entre a passagem e o convite a sentar e a contemplar. Os depA optaram, primeiro, pela abertura de um sulco profundo que nos introduz literalmente na terra e, depois, pela erecção de dois elementos verticais que nos atraem depois de regressarmos à superfície. A intervenção, às portas do Gerês, aspira ao domínio do meio, mediante a artificialidade do material e a imposição formal e, ao fazê-lo, enfrenta a força e o poder da natureza. A forma escultórica de André Banha, pedra sobre rocha, nasceu da vontade de marcar um lugar, num gesto de poder e autoridade que define a relação do sujeito com o meio. No entanto, o volume estranho e impositivo pode-se penetrar e habitar e, nesta funcionalidade, reconcilia-se com os traços antropológicas do lugar e recorda estruturas associadas às deslocações de rebanhos e pastores. A Torre de Sofia Pera (STILL urban design) e Miguel Seabra incorpora igualmente a vontade de marcação ostensiva da paisagem, através de uma forma arquetipal e de uma matéria bruta. A peça é, simultaneamente, evocação do campo arqueológico que se situa nas proximidades, da ocupação ancestral do território pelas comunidades humanas e observatório do mundo em redor. Uma outra forma de apelar à observação inscreve-se na proposta de João Mendes Ribeiro com a criação de dois bancos instalados no muro de um miradouro em Deocriste, Viana do Castelo. Num diálogo respeitador do património arquitectónico, os bancos metálicos não ferem o muro de granito nem o miradouro, sendo acompanhados por versos de um poema de Sophia de Mello Breyner escritos na guarda metálica pré-existente. Tudo enfatiza o acto de mirar o horizonte. Mas o diálogo incluiu também uma reivindicação: lembrando o que seria o acabamento correcto do muro, nele se inscrevem instruções técnicas sobre a sua caiação. Assim o dispositivo criado é poético e político. Na margem do rio Minho, pontuada por pequenas construções onde os pescadores guardam as artes de pesca, junto a embarcações e aos suportes onde consertam as redes, a dupla de arquitectos FAHR 021.3, instalou um Abrigo. Nele permanecemos e nele descobrimos a citação e a reinterpretação daquelas estruturas. O abrigo contém essa subtileza que nos dá a entender que sempre ali esteve ou que algo naquele o lugar o esperava. Dalila Gonçalves actualiza uma memória de infância, a dos jogos do esconder atrás das árvores, e a experiência do caminho de Santiago que já percorrera e que reconheceu no lugar que lhe foi atribuído. Opta por abrir uma árvore em pranchas e construir uma barreira transparente porque as tábuas, reforçadas por elementos metálicos na base, estão ligeiramente afastadas entre si. O resultado é um dispositivo de descoberta, sinalética do caminho, elemento protector que gera sombra sobre uma pedra onde o caminheiro pode descansar. É de uma natureza bem distinta, a parede curva, metálica e opaca, que a dupla Pablo Pita (arquitectos Pablo Rebelo e Pedro Pita) ergueu em Ponte da Barca. O gesto foi radical porque o lugar exigia um sistema que isolasse o utilizador/observador, que reenquadrasse a paisagem e encenasse a imaginação. Em síntese: poderia refazer várias vezes o comentário ao trabalho de cada autor porque, na verdade, todos vivem de significados contextuais e relacionais, no sentido literal (e rigoroso) das palavras, possuem um valor de uso e admitem uma pluralidade de perspectivas de leitura. Mas, por mais voltas que desse ao texto, a conclusão seria, possivelmente, a mesma: espectacularidade mínima, monumentalidade zero, retórica nenhuma. Uma vontade de enraizamento parece ter pairado sobre todos os agentes envolvidos no projecto, para benefício de quantos que caminham à sua procura. Para saber mais sobre o projecto: www.desencaminharte.altominho.pt
[1] LIPPARD, Lucy (ed.) – Overlay: Contemporary Art and the Art of Prehistory. New York: The New Press, 1983. |