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QUER PASSAR A NOITE NO MUSEU?MARC LENOT2017-07-29
Não se trata simplesmente de relaxar diante de um vídeo, ou dormir num hotel cheio de obras de arte, mas de realmente passar uma noite ou duas numa cama de verdade num verdadeiro museu. Experiência rara: o Palais de Tokyo propô-la, mas num contentor no telhado (e a um preço exorbitante), o visitante número 10 000 000 do Rijksmuseum foi convidado a passar a noite diante dos Rembrandt e, há 30 anos, Jean Dethier, preparando para o Beaubourg uma exposição sobre o design dos quartos de hotel, queria transformar o Centro Pompidou num hotel onde poderíamos passar a noite, dormindo na própria exposição (a segurança vetou a acção). Não é uma questão (na minha idade...) de um incrustação clandestina à Ben-Ner no IKEA ou à Lazar Kunstmann no Panteão. Se não é raro comer e beber nos museus (e também com Patrick Van Caeckenbergh na Maison Rouge ou com Rirkrit Tiravanija um pouco por todo o lado, ou, por vezes, para arrecadar dinheiro de clientes ricos), passar a noite no museu é muito mais raro. Acabei de dormir duas noites no interior do Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, em Lisboa (Belém), antiga fábrica transformada em um museu há 11 anos (é nesta parte que se dorme) e cuja extensão, arquitectonicamente impressionante, foi recentemente inaugurada. Isto é o que propõe a artista portuguesa Ana Perez-Quiroga (até 9 de Outubro): Neste projeto, ela convida artistas, curadores, críticos a dormir lá, em intercâmbio com ela e com os visitantes, e em seguida, a narrar a sua experiência. Em primeiro lugar, não é irrelevante que a reserva se faça através do Airbnb (onde o alojamento é classificado como uma cabana), quando sabemos a maneira como o espírito e o charme de Lisboa está a murchar sob o afluxo de turistas e quando vemos bairros inteiros (como Alfama) ocupados essencialmente pelos alojamentos turísticos e quase vazios de habitantes indígenas, que já não conseguem aí se alojar. Assim, no nível inferior do museu, onde era a sala das cinzas (e onde vemos ainda no solo os trilhos para os carrinhos), um jardim/praia e uma casa. A areia da praia é na verdade cortiça, as paredes declinam 14 tons de azul para o mar e o céu, podemos preguiçar em cadeiras de praia e assistir aos vídeos da artista. A casa é bastante confortável e agradável; os móveis foram concebidos pela artista, e tudo, absolutamente tudo está à venda, carimbado APQHome: são então os objetos de arte, que merecem portanto um multiplicador de preço elevado: o garfo a 25€ e o pequeno aspirador a 350€. Eu vejo isto não como uma maneira fácil de ganhar dinheiro à custa dos tansos, mas uma denúncia subtil dos mecanismos financeiros do mundo da arte, muito na linhagem de R. Mutt. E o que fazemos durante dois dias no interior do museu? Não somos prisioneiros, podemos sair e passear ao longo do Tejo ao sol, visitar outras exposições às horas de abertura (meio dia-20h), ler, escrever, enviar mensagens (eu encontrava-me no momento da divulgação da tentativa de artwashing com a suposta Bienal do Mediterrâneo), mas sobretudo conversei com os visitantes, com aqueles que pareciam interessados no projeto; de memória, portugueses, norte-americanos, canadianos, mexicanos, um colombiano, italianos, franceses, uma suíça, espanhóis, escoceses, ingleses, holandeses. Algumas memórias, entre outras: E à noite? Bem à noite saio para jantar, posso dormir, sem ser despertado pela luz do dia (isso fez-me falta). Teria gostado de vaguear pelas salas do Museu no meio das outras exposições: Que ensinamentos a tirar? Primeiro, que o paradigma de Ana Pérez-Quiroga sobre a porosidade da fronteira entre público e privado, entre íntimo e exposto, sobre os quais todo o seu trabalho é baseado, funciona perfeitamente: Eu estou em "minha casa", mas não importa quem pode entrar, sentar-se numa cadeira ou testar a cama. Certamente estes são visitantes de museu em princípio bem comportados, e é apenas entre o meio dia e as 20 horas, mas mesmo assim eu ainda sinto uma certa forma de embaraço, de ligeiro desagrado (e evito coçar o nariz ). É uma forma de alteração do quotidiano, de transmutação. Depois, o facto de não estar lá nem artista, nem mediador, nem visitante, leva-me a refletir sobre o meu lugar, e portanto sobre o que é um museu e como o percebemos. Finalmente, isso questiona também o papel da própria artista, para quem esta é uma obra de arte total, mas que, uma vez que ela me acolheu no primeiro dia desapareceu em seguida: ela criou um dispositivo e, em seguida, deixa-o correr, um pouco, a meu ver, na linha do que Franco Vaccari fez em Veneza em 1972 (e noutros lugares...) Este projeto é totalmente emblemático da abordagem da artista entre o público e o privado. Assim, organizou todo um projeto artístico à volta do seu apartamento, com uma catalogação sistemática de todos os objetos que estão aí presentes, e a possibilidade de partilhar a sua refeição ou o sítio onde vive, e de comprar qualquer ou quase todas as suas propriedades. O apartamento não é composto de zonas tradicionalmente privadas (quarto, casa de banho) e zonas públicas (sala), tudo se mistura. O seu sentido de intimidade não se baseia nas suas possessões (nem mesmo no seu corpo), mas nos seus sentimentos, nos seus pensamentos: o seu pudor protege as suas afeições, não a sua nudez. Noutras instalações do seu “Breviário do Quotidiano”, os objetos roubados aqui e ali em locais públicos, colheres de café, pacotes de açúcar, auscultadores distribuídos em aviões, etc., são exibidos em vitrines de museu, numerados, catalogados, documentados: aquilo que todos nós já fizemos num momento ou outro, e do qual não nos orgulhamos, é mostrado aqui, confessado, tornado público (enquanto que o furto de objectos de arte permanece impune, das métopas do Parthenon às Bodas de Caná). Essa abolição da distância entre a sua vida privada e a sua postura de artista encontra-se em muitas das suas obras. Vi, no Museu do Chiado, uma instalação onde, sobre uma parede coberta de vermelho, evocando um interior burguês tradicional, ela dispôs 35 pratos em porcelana, todos decorados com uma imagem sua (impressa sobre a porcelana como o são os retratos dos defuntos sobre as pedras tumulares), nua sobre uma mesa, exposta como uma mercadoria, um objeto a consumir (o desejo que a arquitecta grega encontrou no MAAT), com, sobre o rebordo do prato, em quatro línguas, a frase "Eu odeio ser gorda, come-me por favor" ("I hate being fat, eat me please"). Essa contestação do lar burguês, essa intrusão de uma sexualidade quase pornográfica, essa injunção no conformismo estético da insignificância, este apelo ambíguo à consumo tanto alimentar como sexual, contribuem para a afirmação de um discurso político e feminista que, sob uma cobertura de ironia, é de uma violência radical. Outro exemplo das suas transgressões entre público e privado: aquando da Exposição Universal de Shanghai, as autoridades desaconselharam os habitantes de sair para a rua de pijama, como tinham o costume de fazer. O pijama usado em público é visto como um sinal transgressivo, não só uma negligência pouco elegante, mas também uma revelação incongruente da intimidade da cama (sono e sexo) aos olhos de todos. A artista passeou portanto pelas ruas de Shanghai, num centro comercial e no Consulado de Portugal, na companhia de uma mulher chinesa, ambas vestidas de pijama. Esta performance perturbadora, independentemente da sua dimensão histórica (o pijama seria uma invenção portuguesa adotada pelos chineses no século XVIII), é também um questionamento do papel das mulheres no espaço público. Sob uma aparência ligeira, Ana Pérez-Quiroga tem de facto um discurso feminista muito assertivo, em torno do estereótipo da dona de casa, da assimilação do íntimo e do feminino, e da dificuldade cultural das mulheres terem uma presença pública. Assim, as suas numerosas peças em tecido colorido (este em torno da bandeira, este com a sua economia participativa, ou ainda este, e todos aqueles que adornam as paredes e tecto da cabana do MAAT) não são puramente decorativos: eles atestam a passagem do artesanato à arte (com, como exemplo, Anni Albers), e da maneira como este passatempo feminino foi capaz de se afirmar como arte em si mesmo. Em suma, em todo o seu trabalho, sistematização e ironia são ferramentas para ter um discurso muito político e crítico.
Marc Lenot |