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SOMOS TODOS RAVERSSUSANA POMBA2008-09-30Um vĂdeo do artista plĂĄstico Mark Leckey, um dos nomeados para o Turner Prize deste ano, que inaugurou na Tate Britain a 30 de Setembro, faz pensar na origem da cultura rave e no que isso transformou a maneira como nos divertimos Ă noite, hoje. âA Ășnica coisa vaga sobre a rave a que fui em Vagos (perto de Aveiro) Ă© mesmo o ano em que ocorreu, 95 ou 96. Na verdade tambĂ©m nĂŁo me lembro dos DJs - mas era techno, foi numa fase em que nĂŁo suportava vozes. A logĂstica para estas coisas nessa altura era sempre semelhante: depois da informação filtrada atravĂ©s dum cartaz ou flyer e contabilização do nĂșmero dos elementos excursionistas (1), vinha a ansiedade da compra das substĂąncias catalisadoras (sempre dependente de muitos telefonemas) e sua respectiva qualidade (2), a tradicional viagem de comboio (3) onde se encontravam mais fiĂ©is, com os quais se faria a viagem de volta. Ă chegada, reconhecimento do local e ambiente (4), determinação da posologia das substĂąncias (5) tendo em conta a anĂĄlise da progressĂŁo musical (6) e finalmente, a âdiversĂŁo realâ (7). Para responder aos pontos numerados e respectiva aplicação a esta rave em particular posso dizer: (1) Ăramos dois rapazes (2) Para fazer compras foi preciso ir a uma casa com paredes esponjosas laranja duma tia tipo Goa, muito simpĂĄtica, o que nos fez supor que os quĂmicos seriam mais apropriados para uma noite em Ibiza do que para uma rave techno num recĂ©m-inaugurado pavilhĂŁo multiusos na provĂncia. Nessa altura o preço mĂ©dio dum ecstasy rondava os 5.000 escudos. TambĂ©m posso dizer que valiam tudo o que custavam, e sĂł era preciso um. (3) JĂĄ na estação ferroviĂĄria de Aveiro ingressĂĄmos no autocarro que completava a ligação para Vagos, e que foi apanhando pelo caminho os mais ansiosos que jĂĄ se tinham posto em movimento. O motorista âfoi camaradaâ e nĂŁo foi preciso insistir para pĂŽr a tocar a cassete techno que um dos viajantes do autocarro tinha no seu walkman e que estava mais de acordo com a ocasiĂŁo. (4) A rave era num pavilhĂŁo gigante, com alguns lasers no exterior e outros tantos no interior. Todo o recinto estava aberto, podia-se estar nas bancadas ou na zona de jogo que tinha quatro enormes colunas, uma em cada um dos cantos. A ĂĄgua tinha que se comprar porque estava cortada nos lavatĂłrios das casas de banho. O resultado disto eram quase sempre alguns autoclismos e sanitas destruĂdas, mas nĂŁo me lembro disso desta vez. Talvez por eu dispensar goles de ĂĄgua sempre que alguĂ©m mos pedia. E como estava com a t-shirt da Nossa Senhora de FĂĄtima... Nestas funçÔes tinha sempre comigo trĂȘs ou quatro garrafas de ĂĄgua que alargariam irremediavelmente as Leviâs de bombazina castanhas claras que eu usava sempre nas raves, alternando t-shirts, ora o Galo de Barcelos, ora a Nossa Senhora de FĂĄtima, ambas compradas numa loja de souvenirs no Rossio (espera, a de FĂĄtima foi-me trazida por alguĂ©m mesmo de FĂĄtima). (5), (6) e (7) Com cuidado e com a regularidade habituais começåmos a tomar primeiro uma metade, depois mais um quarto, e assim sucessivamente atĂ© acharmos estar com a dose ideal para estarmos confortĂĄveis com o tipo de mĂșsica e tipo de actividade correspondente: (a) dançar, (b) deambular, (c) falar com outros ravers, (e) todas as anteriores (e nĂŁo vou incluir aqui (d) algo de teor sexual). O meu amigo, que jĂĄ estava com os seus habituais âolhos cheios de raveâ, escolheu (b) e desapareceu durante algum tempo, eu fiquei-me pela (a), com pequenas incursĂ”es em (b) e (c), especialmente quando andava a fazer o milagre da multiplicação da ĂĄgua. Estive muito tempo perto de um rapaz que dançava com uma peĂșga enfiada numa das suas mĂŁos - avançava e recuava em grandes movimentos para uma das enormes colunas de som num dos cantos. Estive tambĂ©m sentado a fazer progressĂ”es de imagens na minha cabeça ao som da mĂșsica. O meu amigo encontrava-me de tempos a tempos, ou eu a ele, no sistema de rede de segurança que aplicĂĄvamos sempre, a perguntar âTĂĄs bem?, tĂĄs bem?â. Outras pessoas vinham ter comigo e desatavam a falar, e eu ficava a ouvi-las com prazer.â Ex-raver anĂłnimo Existem coisas que apenas vivemos, em segunda mĂŁo, pela descrição aparentemente factual mas sempre algo nostĂĄlgica dos amigos com boa memĂłria. Ă por isso que o relato aqui reproduzido, testemunho de um passado recente, serve de introdução e complemento essencial a este texto. Se nĂŁo formos apenas bons ouvintes, partilhamos com igual entusiasmo outras histĂłrias, vividas por nĂłs. Apesar de ter sido uma viagem de estudo memorĂĄvel pela experiĂȘncia e encontro com numerosos lugares e obras de arte â a peça que marcou em absoluto a minha visita Ă Bienal Manifesta 5, em San Sebastian, PaĂs Basco, em Junho de 2004 (uma bienal que cada dois anos ocupa sempre uma cidade diferente) foi um vĂdeo de cerca de 15 minutos do inglĂȘs, entĂŁo desconhecido, Mark Leckey, com o tĂtulo sugestivo Fiorucci Made Me Hardcore. Para quem anda frequentemente em exposiçÔes, estes momentos sĂŁo raros. SĂŁo momentos em que mesmo a personagem mais âartyâ se esquece que estĂĄ a ver uma obra de arte. E sĂŁo das melhores experiĂȘncias estĂ©ticas. NĂŁo estamos a pensar quando Ă© que isto acaba e quantos segundos mais Ă© que temos que aqui estar atĂ© ser socialmente aceitĂĄvel sair da sala, antes do fim. Fiorucci Made Me Hardcore fez-me ficar muito mais do que quinze minutos. Para ter a certeza que tinha visto cada segundo do vĂdeo. E lembro-me do absoluto entusiasmo com que saĂ da sala. Tinha 16 anos em 1990 e nada me irritava mais do que quando me diziam que nĂŁo existia nada que realmente definisse a dĂ©cada que estĂĄvamos a viver. Nada verdadeiramente interessante e distinto como nos anos 60, 70 ou 80. Ainda estĂĄvamos provavelmente a meio da dita e parecia-me que era tarefa inglĂłria tentar nessa altura chegar a alguma conclusĂŁo definitiva. Ă claro que hoje passados tantos anos jĂĄ sabemos o que distinguiu os 90. Depois de uma passagem, em 1990, pela exposição New Contemporaries no Institute of Contemporary Art, em Londres, ao lado de artistas como Damien Hirst, Mark Leckey fez poucas exposiçÔes atĂ© 1999. Fiorucci Made Me Hardcore, desse ano, foi a peça do seu âcomebackâ. Um renascimento certeiro â usando âfound footageâ, Leckey faz a histĂłria da âyouth dance cultureâ no Reino Unido dos anos 70 e da vaga Northern Soul atĂ© Ă progressĂŁo no final dos anos 80 para a ârave cultureâ. Vemos passo a passo os movimentos elaborados com âflipsâ, âspinsâ e âbackdropsâ caracterĂsticos da maneira de dançar do Northern Soul em conjunto, claro, com uma maneira caracterĂstica de vestir, atĂ© aos mais livres e menos tĂ©cnicos passos da mĂșsica electrĂłnica e as roupas mais sporty. A certa altura no vĂdeo uma voz nomeia mesmo uma sĂ©rie de marcas do sportswear popular dessas alturas: Ellese, Cerruti, SĂ©rgio Tacchini, Lacoste, Fila, Kappa, Jordache e Fiorucci, claro, a marca italiana, com o logo dos anjinhos, popularizada durante os anos 80. Mas esse Ă© o caminho atĂ© Fiorucci Made Me Hardcore, o visĂvel centro do vĂdeo de Leckey Ă© especificamente a cultura rave, o seu inĂcio na GrĂŁ-Bretanha datado do final dos anos 80 e os diversos sub-gĂ©neros da mĂșsica electrĂłnica que nasceram da influĂȘncia do âacid houseâ de Chicago. Neste caso especĂfico de Leckey â o âhardcoreâ ou âhardcore technoâ. A montagem da âfound footageâ que compĂ”e Fiorucci Ă© feita em sintonia perfeita com a mĂșsica que ouvimos e dirige-nos imediatamente para a euforia das raves âoriginaisâ dos anos 90. âYouth cultures go the opposite way of the prevailing political cultural modeâ, diz o lendĂĄrio Tony Wilson, na altura homem da televisĂŁo, dono da Factory Records e do clube Hacienda em Manchester (tĂŁo importante para o crescimento da cultura rave), no documentĂĄrio da BBC2 â1989: The Summer of Raveâ (estĂĄ todo no youtube). As primeiras, e hoje mĂticas, grandes raves na GrĂŁ â Bretanha foram feitas pelos âfilhos de Thatcherâ, que em 1989 celebrava dez anos no poder. Foram eles quem lucraram com a visĂvel vontade dos jovens de se reunirem em torno da mĂșsica, de se unificarem pelo prazer, com a ajuda de uma nova droga, o Ecstasy, roupas largas e coloridas e, no inĂcio, um sĂmbolo trazido do acid house â o amarelo âsmileyâ. O vĂdeo de Leckey, pelo seu estilo documental e por ter sido feito por alguĂ©m que esteve dentro do prĂłprio mundo que retrata, pode servir de sĂmbolo do final dessa era. Foi feito em 1999 e nos anos seguintes as palavras âraveâ e âraversâ tomaram conotaçÔes nĂŁo tĂŁo libertadoras mesmo dentro da mĂșsica electrĂłnica. Era preferĂvel utilizar a palavra âclubbersâ, ou âclub cultureâ - parecia mais soft. O tempo da palavra âraveâ, que jĂĄ teve muitas vidas, desde significar apenas falar com entusiasmo atĂ© ser associada ao excesso, parecia ter passado. Ao escrever sobre Fiorucci Made Me Hardcore no catĂĄlogo da Manifesta 5, o prĂłprio artista declara: âPictures of pleasure are always melancholic. Nothing is more heartbreaking than a smile from the past. Fiorucci does not celebrate club culture, it is more my own elegy for certain sensations which are now merely half recalled (and via meditation), like a second-hand memory of someone else in loveâ. E chegamos a 2000 e Mark Leckey (nascido em 1964) começou a expor de forma regular tanto nas suas galerias (a Gavin Brownâs Enterprise, em Nova Iorque, a Cabinet, em Londres e a Daniel Buchholz, em ColĂłnia) e fez mais uma mĂŁo cheia de vĂdeos como We Are (Untitled), uma encenação de um âafterâ ou âLondonAtellaâ uma espĂ©cie de videoclip com mĂșsica feita pela sua banda da altura os donAteller (brincadeira com Donnatella Versace), que sobreviveram entre 2000 e 2003 com o lema âSteal Stolen Stuffâ (faziam versĂ”es muito distantes do original de, por exemplo, âNever Neverâ das All Saints). Hoje, Mark Leckey Ă© professor de Film Studies na StĂ€delschule, em Frankfurt, e dedica-se a fazer instalaçÔes e vĂdeos que continuam a questionar a cidade e a dĂ©cada em que vive e, como qualquer artista depois de Duchamp, a pensar a prĂłpria histĂłria da arte. A mĂșsica tambĂ©m nĂŁo deixou de ter um papel central â Leckey reuniu-se outra vez com o seu amigo Ed LaLiq (dos donAteller), com Kieron Livingstone (dos All New Accelerators) e com o tambĂ©m artista plĂĄstico e mĂșsico dos Add N to (X), Steven Claydon e formou os Jack Too Jack. Que pelo que se ouve na sua pĂĄgina do myspace se divertem muito a fazer raps estranhos a gozar com a recente fama de Bansky no mundo da arte. O seu lema agora Ă© âWhat was once about now is now about thenâ. E tido como mais importante que isto Ă© a sua recente nomeação para o Turner Prize deste ano (os outros trĂȘs nomeados sĂŁo mulheres â Runa Islam, Goshka Macuga e Cathy Wilkes). Mas hoje Fiorucci Made Me Hardcore parece ainda fazer mais sentido do que quando foi feito em 1999, quase dez anos depois existem novos usos da palavra rave, supostos revivalismos, e ainda mais em que reflectir. Estamos quase a chegar ao fim destes anos 00 e ainda vemos a dĂ©cada que vivemos como algo estranho que tentamos classificar com referĂȘncias de tempos idos. As questĂ”es jĂĄ sĂŁo muitas: a ânovaâ geração Ă© afinal a geração âNew Raveâ, âNu Raveâ ou âRock Raveâ? Estamos mesmo a testemunhar a comunhĂŁo entre o rock e a mĂșsica de dança - aka DFA, LCD, Justice âstarletsâ? Ă isto que realmente vai ficar como algo determinante na âyouth cultureâ da primeira dĂ©cada deste sĂ©culo? Uma coisa Ă© certa, Ă© preciso se calhar avisĂĄ-los da bela ironia que Ă© ver os smiles da cultura âacid houseâ disseminados por todos os telemĂłveis e messengers do mundo, a servirem massivamente para expressar as emoçÔes das novas geraçÔes. Como Ă© tambĂ©m ver que a roupa de quem tem hoje 20 anos aparenta ser uma versĂŁo entre o justo e cool do rock dos 70s com as cores berrantes e fluorescentes dos anos 80. H&M will make them hardcore? Seja que palavra usarmos, por soar melhor hoje, serĂĄ que ainda temos que esperar muito para perceber que, no fundo, somos todos ravers? Susana Pomba www.missdove.blogspot.com www.myspace.com/markleckey www.galeriebuchholz.de NOTA Texto originalmente publicado na revista do Lux (Julho/Agosto 2008). www.luxfragil.com |