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MUSEUS, PATRIMÓNIO CULTURAL E VISÃO ESTRATÉGICALUÍS RAPOSO2020-08-07
Faça-se um exercício simples, que as tecnologias ao nosso dispor agora tornam também fácil: procure-se no documento “Visão estratégica para o plano de recuperação económica de Portugal 2020-2030” a palavra “museu” e a expressão “património cultural”. A primeira surge 5 vezes apenas, em somente dois contextos; a segunda, surge 6 vezes apenas e nos mesmos contextos. Poder-se-ia afirmar que só isto diz tudo quanto ao lugar de ambos no País que este Governo visiona dentro de uma década. Ou seria mais rigoroso se disséssemos que só isto demonstra o quão irrelevante se tornou o Ministério da Cultura, que nunca foi importante, convenhamos, mas agora se revela pouco mais do que inútil. Podemos e devemos ir mais fundo, no entanto. As referências indicadas são feitas no décimo e último “eixo estratégico” considerado: “Cultura, Serviços, Turismo e Comércio”. Dentro dele, no “Programa para a Cultura, Criatividade e Inovação”. E dentro deste em dois sub-programas: “Criatividade, Tecnologia e Digitalização” e “Eco-arte, Património Cultural e Natural”. Quanto ao primeiro (“Criatividade, Tecnologia e Digitalização”), “através de bolsas de doutoramento/especialização e de emprego científico” os museus e monumentos são chamados a participar num “programa nacional de investigação e desenvolvimento para fileiras altamente especializadas na área da cultura”. E em “articulação entre instituições culturais (cinemateca, arquivo nacional sonoro, museus e monumentos) empresas tecnológicas e Centros Tecnológicos e de Investigação”, são chamados a colaborar no “programa para financiamento de digitalização de conteúdos e obras artísticas (cinema, obras de arte) e de desenvolvimento de ferramentas tecnológicas para o património cultural (3D, realidade virtual)”. Quanto ao segundo (“Eco-arte, Património Cultural e Natural”), o património cultural (já não os museus) é chamado a participar num “Plano Nacional para a Integração dos Patrimónios Cultural e Natural, visando a reabilitação e dinamização dos muitos monumentos e museus do país que integram património cultural com património natural e que podem ser importantes ativos para o desenvolvimento económico e a coesão territorial; a reabilitação conjunta deste património, cultural e natural, é, também um importante instrumento para o desenvolvimento de programas eco-artísticos”. Lemos e sorrimos, para simplesmente não chorar. Como é tudo tão vago, tão previsível, tão “flor na lapela” e afinal tão pífio. E como se escapa como areia entre os dedos aquilo que deveria ser o valor nacional estratégico dos museus e do património. No primeiro programa, apenas se repetem as obsessões triviais do tempo que corre: digitalização, bolsas e estágios… Nada que faça mal, entenda-se. Mas causa urticária verificar como os bens patrimoniais em si mesmos, e mormente os museus, que têm, sempre tiveram, vida e saber próprios, são visto assim como “belas adormecidas”, sem vontade própria e prontas para, em casamento à antiga, serem postas ao serviço dos seus nubentes: o “mercado”, empresarial ou universitário. Para quem é do meio e conhece as forças no terreno, as palavras não enganam e sabe-se bem o que quer dizer “fileira altamente especializada na área da cultura” e de onde vem o apelo à “criação de um Laboratório em Rede (a partir dos já existentes em Portugal) para a investigação dedicada à valorização do património cultural, com especial enfâse na integração de metodologias das ciências físicas e dos materiais em abordagens interdisciplinares.” E sabe-se também de todo o mercado de fornecedores, desculpem, de providers, à espera de que lhes arranje onde aplicar as últimas coca-colas do deserto em matéria de digitalização e realidade aumentada ou virtual – isto quando, em termos reais, os museus não têm quem faça estudo de colecções e inventários, mantendo os acervos acessíveis aos diferentes tipos de utilizadores. No segundo programa fala-se de algo mais sério, mas a sensação amarga é a mesma: museus e património cultural apenas são chamados à liça para melhor comporem o ramalhate “eco-artístico”. Que maus (eco)pintores nos saíram estes planeadores estratégicos! Lembram-se de plantar (o termo será talvez o mais apropriado) “residências Artísticas, em jardins de museus e monumentos, jardins botânicos, Museu de História Natural e outros espaços de biodiversidade do país” e foram ao ponto “visionário” (pois que de visão se trata) de considerar um “Plano Nacional para a Integração dos Patrimónios Cultural e Natural”. Mas não lhes passou sequer pela cabeça criar um Plano para a Reabilitação do Património Cultural em si mesmo, com metas quantificadas em matéria de intervenções, de criação de emprego local, de gestão partilhada com autarquias e finalmente de promoção nacional e internacional. No que aos museus se refere a sensação de navegação à deriva é particularmente notória e dolorosa porque, por fatal coincidência, surge esta “visão estratégica” quando se finaliza documento que igualmente assim se reclama e visa horizonte temporal idêntico, ou seja até 2030. Referimo-nos, ao Relatório Final (ainda que em versão preliminar) do Grupo de Projeto Museus no Futuro, sendo que a chocante omissão deste ou é devida a lapso gigantesco ou então, quiçá o mais provável, a ter-se no Ministério da Cultura já por adquirido que afinal, como todos os anteriores, também ele será um exercício destinado a guardar em gaveta. E, como dissemos noutro local, é pena que assim seja. Não, porque o Relatório tenha nascido e sido alimentado bem até debutar, bem ao contrário, mas porque contem afinal recomendações úteis e, não obstante o seu caracter amiúde vago também é bastante mais substantivas do que o conjunto de generalidades aqui contempladas. Dois exemplos apenas permitem ilustrar como seria útil recorrer ao dito Relatório nesta Visão. Primeiro, a efectiva criação de uma rede de museus dotados da capacidade (meios humanos, espaços, equipamentos laboratoriais, suportes museográficos, etc.) para funcionarem como centros de apoio aos museus das suas regiões, em matérias como o inventário de colecções, a programação articulada de actividades, nomeadamente exposições, a formação profissional em exercício, etc. Segundo, a criação pelo Turismo de Portugal de uma linha de financiamento destinada a apoiar a programação dos museus portugueses, acompanhada depois da devida promoção nacional e internacional. Tudo isto, claro, em articulação com a Rede Portuguesa de Museus, conferindo-lhe a devida operacionalidade e sendo certo que esta mesma deveria ocupar lugar privilegiado na Visão que ora nos propõem. Claro que muito mais haveria a dizer, mesmo aceitando os limites conceptuais estreitos (nada estratégicos) desta Visão na área que em apreço e, estou em crer, na Cultura em geral. Estreito, esteiro mesmo, até surpreendentemente estreito. Por exemplo: porque não ligar o “fazer português” aos arquivos patrimoniais, designadamente aos museus (entre estes os de etnografia, que se espalham por todo o País), que pelas suas colecções e pelos seus próprios espaços poderiam constituir alforjes ao serviço seja do artesanato tradicional, seja da recriação contemporânea. Dir-se-á que esta “visão estratégica” ainda está em discussão pública e será melhorada. Mas a vontade de colaborar nunca poderá ser muita em face de tão confrangedor ponto de partida, que talvez tenha como principal causador a inutilidade, quase indigência, do actual Ministério da Cultura. Por isso, porque nos dão um e-mail para enviar sugestões [plano.recuperacao@pm.gov.pt] é mister usá-lo. Mas fica-nos a forte sensação, baseada em experiência feita, que quanto muito se receberá talvez confirmação gentil da participação. Que de pouco mais servirá do que para alimentar as estatísticas do sucesso da dita consulta pública.
Ciclar para obter a “Visão estratégica para o plano de recuperação económica de Portugal 2020-2030”.
Luís Raposo |