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TRANSNATURAL. DA VIDA DOS IMPéRIOS, DA VIDA DAS IMAGENSMARCELO FELIX2007-09-20Uma das circunstâncias algo menosprezadas que ao longo do período de expansão colonial das potências europeias reforçaram a apreensão do mundo enquanto totalidade abarcável e exibível foi o interesse pela botânica. Um interesse que, para além das paixões que suscitava e das suas motivações económicas e científicas, e para além do universo prático das suas aplicações, da medicina à alimentação, da decoração à agricultura, se constituía como uma manifestação simbólica de poder. Na área modesta de um jardim botânico hospedava-se a diversidade biológica de um império; a sua extensão harmonizava-se numa estufa, a sua riqueza podia ostentar-se num herbário. O efeito propagandístico destes microcosmos, elaborados para o estudo da ciência e para o lazer mundano, foi um motor importante do interesse que o poder lhes dedicava. A falta de atenção dos espanhóis à sua própria flora foi criticada por Lineu na obra “Fundamenta botanica” em 1736. O embaraço não teria alterado grande coisa se as recompensas políticas não incentivassem uma mudança de atitude. E Humboldt, o grande naturalista, podia notar em 1811 que a Espanha investia mais na ciência botânica do que qualquer outro governo. Com maior ou menor orçamento os países europeus, mesmo os que não podiam senão por procuração dar a ver o património de um império, equiparam-se com instalações botânicas e juntaram esforços na aventura da descoberta e classificação do mundo vegetal. Esta confluência íntima do interesse político e científico, unidos numa dependência mútua de prestígio e financiamento, tornou-se um facto tão normal em qualquer empresa botânica que mencioná-lo é como chamar a atenção para os elementos arquitectónicos clássicos disseminados ao longo de um jardim: espera-se que estejam lá e sejam respirados tão naturalmente como a flora. E no entanto, é desconcertante vê-lo mesclado de maneira tão confusa que a parte científica parece perder o pé, em favor da acção de divulgação do império, tal como nos dá a ver o filme “Missão Académica a Angola – Alguns Aspectos Cinematográficos da Viagem”, produzido durante uma expedição do Instituto Botânico da Universidade de Coimbra “nas férias grandes de 1928/1929”. Este filme de Maximino Correia (que viria a ser reitor daquela universidade) integra a exposição “Transnatural”, comissariada por Paulo Bernaschina e Alexandre Ramires, patente até 31 de Outubro no Museu Nacional de História Natural. “Missão Académica a Angola” parte da amplidão dos espaços do Jardim Botânico de Coimbra; mas está longe de reflectir a sistematização arrumada desse lugar inicial. Os membros da expedição acabam por empreender uma visita que decorre em abertura (um assinalar permanente e festivo da sua passagem, na partida de Lisboa em Agosto, na chegada a Luanda quinze dias depois, e daí em diante por numerosos locais de norte a sul da colónia) e em fechamento (pois a expansão do horizonte botânico jamais é sentida no pequeno filme documentário). Tradicionalmente uma missão botânica devia albergar em si mais do que as instâncias da sua disciplina. Uma expedição destinava-se a conhecer ou reconhecer terreno. Integrando o testemunho das imagens, pedia-se-lhe que desse a ver o mundo. Talvez como pressuposto essa não fosse uma directiva muito clara. Tal como a missão, pelo testemunho do filme, gastava grande parte do seu tempo e energia em actividades de preenchimento de agendas de propaganda e relações públicas do Poder, também as imagens que ia recolhendo reflectiam um programa pouco definido, que aceitava a fotogenia dos lugares visitados sem tentar entreter com eles uma unidade mais consistente que a de pontos do trajecto. Entre o fascínio do exótico e a anotação do progresso nas suas paragens, as possibilidades do filme acabam por se retrair num tom geral de viagem de grupo, cujo interesse botânico é nulo. O que deixa, por contraste, todo um espaço que a parte fotográfica da exposição (de que o filme projectado é complemento) pôde ocupar: as imagens expostas de autor anónimo acrescentam ao registo de passeio oficial a observação efectiva do espaço humano e da natureza. Cobrindo um percurso de alguns milhares de quilómetros, de Luanda a Moçâmedes (o actual Namibe) passando pelo Bengo, Cuanza, Malanje, Lunda e Huíla, as fotografias documentam momentos captados em Junho, Julho e Outubro de 1927. Ausente ou presente, o homem reforça a imensidão da paisagem, que faz o tema dos relances mais impressionantes: uma queimada na Lunda, uma miragem no deserto do Namibe, um embondeiro gigante no Dondo, junto ao Cuanza, as cataratas de Lucala, no Malanje, uma jangada no Lago Panguila, no Bengo, as cubatas no planalto de Humpata, no Huíla. Não é a botânica que predomina, mas as visões da excepcionalidade da terra visitada para a expedição metropolitana visitante. Aqui não há, ao contrário do filme “Missão Académica a Angola”, um ensaio de fotogenia preparando quem não domina a “arte do silêncio”. O efeito que produzem estas imagens, oito décadas volvidas, é o de uma evocação do silêncio com que a história que entretanto decorreu se ia aproximando deste mundo; os sonhos de progresso da escassa classe dirigente e a sua confiança, maior ou menor, nos destinos do império, são memórias absolutamente incorporáveis à fotogenia seleccionada: o embondeiro inabarcável, o terreno erodido, o carro afrontando um caminho de capim alto, a miragem no horizonte desértico. Nem na vida nem nas expedições existem certezas quanto ao verdadeiro estatuto de uma paisagem, e aquela não correspondeu senão transitoriamente à dimensão simbólica e política de que a queriam investida. No entanto havia continuidade e lógica; a paisagem já tinha história e merecimento, uma e outro validados pela expedição, então velha já de quatro décadas, de Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens. Fora um passo na direcção que conduzia ao progresso, o das estações zootécnicas e plantações de cafés, das vacinações colectivas e caminhos de ferro. Se a realidade se distanciou das intenções, também as suas imagens perderam um carácter exemplar a ele associado, e órfãs do seu modo de percepção e produção, expõem-se hoje na sua precariedade de indícios de um projecto imperial. O que podem dizer agora é da sua fragilidade e da do mundo que as produziu, que foi um exíguo produtor e descuidado conservador de imagens, fixas ou em movimento. São portanto objectos de memórias esparsas as fotografias de “Transnatural”. O seu estatuto, porém, junta uma adenda mais às significações múltiplas da exposição: se o regime destas imagens é difuso pelos acidentes económicos, ideológicos e históricos que as condicionam, o que dizer de quaisquer elementos que possam apresentar, quando furtados à condição de imagens e inseridos na realidade da exposição? É o que parece questionar a presença solitária, sem qualquer identificação ou nota explicativa, de uma welwitschia mirabilis. Um dos organismos vegetais de maior longevidade, ela parece mencionar a história como elemento de transformação da percepção e da vida das imagens, e da vida que elas captam, guardam e revelam. Sempre para um outro tempo. Marcelo Felix Cineasta |