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OPINIÃO


Digital Archaeology, secção dedicada à arquelogia digital da exposição Digital Revolution. Cortesia Mathew G. Lloyd/Getty Images.


Captura de ecrã de Inception. 2010. Cortesia Warner Bros.


Captura de ecrã de FEZ. 2012. Cortesia Polytron Corporation.


Vista de co(de)factory, estrutra dedicada ao design de peças em 3D, Karsten Schmidt. Cortesia Mathew G. Lloyd/Getty Images.

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RUMORES DE UMA REVOLUÇÃO: O CÓDIGO ENQUANTO MEIO.



JOSé RAPOSO

2014-09-08




Uma celebração da revolução digital: é esta a proposta do Barbican com a exposição Digital Revolution, a decorrer até ao dia 14 de Setembro. A ambição do projecto, “a maior apresentação de criatividade digital alguma vez concebida no Reino Unido”, reflecte-se inequivocamente na sua dimensão: mais de 100 obras, expostas ao longo de 14 salas, agrupadas consoante uma política curatorial que procura colocar em evidência o sentido desta «revolução». A exposição tem uma forte componente arqueológica permitindo assim constatar a alucinante rapidez da evolução tecnológica ao longo das últimas décadas, e o impacto que a utilização de computadores tem provocado quer ao nível da criação artística quer da sua própria distribuição e consumo, em disciplinas e domínios tão diversos como os novos média, o design, o cinema, música e videojogos. Que revolução, afinal, é esta?

A produção de um “blockbuster de verão” dedicado à cultura digital sobre o pretenso signo de revolução é reflexo de algumas questões caracterizadoras do nosso momento. Os motivos são de vária ordem: desde logo, a aproximação às mudanças ocorridas na esfera da produção artística provocadas pelos meios de produção digitais permite esboçar um panorama de um regime mediático heterógeno, onde parece haver a possibilidade de coexistência de produções de grande envergadura (Inception, de Christopher Nolan e Gravity, de Alfonso Cuáron, são os casos de estudo), lado a lado com iniciativas de produtoras independentes (destaque para Robots of Brixton, de Kibwe Tavares); por outro, e esta é uma questão na qual vale a pena insistir quando nos referimos à arte contemporânea, a infiltração ubíqua do paradigma digital em praticamente todos os aspectos das «forças produtivas» parece ter renovado algumas ansiedades relativas à própria noção de meio artístico, muito em particular aquelas enunciadas por Rosalind Krauss enquanto consequência da «desconexão» das práticas artísticas em relação às características específicas do seu próprio meio.

Ainda que não se trate de uma celebração critica do paradigma digital – o ambiente é evocativo daquele típico de uma Exposição Universal – a concentração de um número extraordinário de obras, de várias etapas desta transformação tecnológica e num mesmo espaço, é um evento invulgar, acabando por colocar em evidência, ainda que indirectamente, alguns paradoxos dessa pretensa revolução. A secção de abertura dedicada à arqueologia digital é exemplar de alguns dos problemas conceptuais deste discurso revolucionário: uma das obras de abertura, Pong de 1972, é um videojogo que consiste numa representação muito esquemática do ténis de mesa; a obra com que fecha o segmento é o célebre Angry Birds, de 2009, exposto num IPhone. Revolução de pólvora seca, esta em que acabamos na mesma casa de partida. Numa altura em que os «telefones inteligentes» são um produto massificado, a euforia revolucionária em torno de um conjunto de pássaros zangados terá sempre contornos «revolucionários» muito discutíveis.

Mas a disposição de um grande número obras do nosso passado digital por ordem cronológica tem ainda uma outra leitura, com implicações nefastas. Face à ausência de um discurso que acompanhe o percurso da evolução tecnológica que a exposição procura colocar em evidência, o que fica implícito é que a emergência da «cultura digital» parece derivar e ser determinada pela «tecnologia digital».

Ao ser colocada grande ênfase no aparato tecnológico que suporta tanto o Pong como o Angry Birds, fica-se com a sensação de que a tecnologia é o factor decisivo na materialização dessas culturas, como se a sofisticação gráfica do Angry Birds – ou do Gravity – fosse produto exclusivo da extraordinária evolução do hardware que as suporta. Esta é uma ideia com ramificações complexas e que deve ser encarada com algumas reservas. Charlie Gere, teórico com presença importante nos debates sobre os novos média, autor de obras tão marcantes como Digital Culture 2.0 (Reaktion Books, 2008) ou Art, Time and Technology (Berg, 2006), coloca-se no cerne destas questões trazendo para primeiro plano os contextos económicos e históricos em que essas manifestações culturais se vão produzindo. Em Digital Culture 2.0, Gere chega a propor uma inversão de cenário, uma hipótese que não será livre de provocação: “a tecnologia digital é um produto da cultura digital, e não o contrário” [1]. Para o autor, o «digital» não se refere apenas aos efeitos e possibilidades apresentadas por uma determinada tecnologia, envolvendo antes formas de pensar e fazer que já estão encorpadas no próprio «pensamento tecnológico». É nesse sentido que a presente cultura digital é um fenómeno contingente ao contexto histórico que a sustém: que o Angry Birds esteja no telemóvel no bolso de milhões de pessoas é portanto uma tendência mais devedora do rizoma das estruturas económicas do capitalismo financeiro e do neoliberalismo, do que um «milagre tecnológico» que tornou possível a produção de microchips do tamanho de um alfinete.

Em todo o caso, e essa é uma realidade que a exposição coloca em evidência com algum mérito, a democratização do acesso aos meios de produção contribuiu para uma paisagem mediática menos dependente de estruturas produtivas de grande envergadura, e que impliquem custos astronómicos para o seu desenvolvimento. No campo dos videojogos este tem sido um desenvolvimento significativo, responsável pela emergência de uma cultura indie ideológica e esteticamente distante daquela popularizada por estúdios AAA [2] – FEZ (2012), e The Unfinished Swan (2012), serão exemplos destacados dessa tendência.

O mesmo hardware que torna possível a pirotecnia visual de um filme como o Inception está hoje ao alcance de artistas como Ed Atkins ou Mark Leckey, e esse é um desenvolvimento com consequências marcantes. Nesse sentido, urge averiguar alguns dos efeitos que a proliferação de meios de produção digital têm vindo a provocar no que à arte contemporânea diz respeito, quer ao nível da criação artística propriamente dita, quer numa vertente discursiva aqui entendida enquanto elaboração de um pensamento crítico e teórico.

Uma das reflexões mais sintomáticas da fractura provocada pelo paradigma do digital no seio da arte contemporânea está patente no artigo publicado por Claire Bishop numa edição da Artforum (Setembro de 2012) justamente dedicada ao tema. Em Digital Divide [3], Bishop interroga a natureza da abstenção da arte contemporânea perante as mutações tecnológicas que têm vindo a ocorrer, impossíveis de ignorar: “Quantos artistas confrontam o significado de pensar, ver e produzir afecto mediante as tecnologias digitais? Quantos tematizam efectivamente esta questão e reflectem de forma profunda sobra a experiência que é assistir à digitalização da nossa existência?” (tradução minha). Para Bishop, e esta é uma questão fundamental, existe uma excepção à regra, materializada na esfera dos «novos média», no seu entender um campo autónomo com estruturas e modelos discursivos próprios. Característico desta «divisão» (de um lado os «novos média», do outro a arte contemporânea) é a forma como a autora se refere à utilização de código da parte dos artistas, motivo aliás de acesa contestação numa série de reacções ao artigo [4]. Na visão da autora, “código é algo inerentemente estranho [5] à percepção humana. O seu suporte é um modelo linguístico. Converta-se um ficheiro .jpg para .txt e aí se encontrarão os seus ingredientes: uma receita ilegível de números e letras, sem qualquer significado para o utilizador comum.” (tradução minha). De facto, o artigo de Bishop acaba por ser sintoma do problema que se propõe a analisar ao longo da sua argumentação: a linguagem crítica com que se refere ao «código» é emblemática da distância que separa os dois campos, sugerindo aliás alguma incapacidade em lidar com a dimensão material do código enquanto medium.

A exclusão do código da esfera do humano é portanto uma leitura que deve ser encarada com alguma suspeita: para além ser concebido e implementado pelo intelecto humano, é muita das vezes produto da actividade de artistas, aspecto aliás integrante da sua actividade artística (evidentemente; como poderia não o ser?). [6]

É no contexto desta discussão sobre o lugar dos novos média no campo da arte contemporânea que a secção dedicada ao código em Digital Revolution se acaba por revelar num dos apectos mais interessantes de toda a exposição. DevArt, é assim denominada a secção curada em parceria com o Google, partiu de um processo aberto de candidaturas e coloca em evidência algumas das questões que aqui têm vindo a ser elaboradas, nomeadamente aquelas relacionadas com as abordagens artísticas focadas nas potencialidades artísticas das linguagens de programação [7]. Uma das obras mais relevantes do programa DevArt é o projecto proposto por Karsten Schmidt, co(de)factory. No sítio online que acompanha a exposição, podem ser criadas peças em 3D a partir do código implementado por Schmidt; diariamente será selecionada uma peça, que será fabricada on site ao longo do dia através de uma impressora 3D instalada no local. No espaço expositivo Schmidt colocou uma estrutura desenvolvida pelo mesmo sistema, onde os visitantes da exposição podem interagir com as capacidades criativas da sua proposta.

A impressão em 3D é assim uma das plataformas associadas aos novos média que vai adquirindo maior visibilidade dentro da arte contemporânea. Um dos artistas que tem vindo a desenvolver um corpo de trabalho bastante consistente neste domínio é Oliver Laric. O projecto que desenvolveu em parceria com a Usher Gallery, Lincoln 3D Scans, é emblemático da utilização da impressão 3D, nomeadamente enquanto estratégia mobilizadora de um conjunto de investigações relacionadas com as consequências das tecnologias de reprodutibilidade técnica de obras de arte: o artista scaneou as peças da coleção do museu, disponibilizando os ficheiros de forma a que estes possam também ser alterados e imprimidos pelos utilizadores [8].

O programa DevArt acaba ainda por refletir a problemática relação entre as estruturas socioeconómicas e a direcção que o «progresso tecnológico» vai tomando. Nesse sentido, e tendo em conta o branding do Google, não será de surpreender a polémica que surgiu em consequência da imposição para que os projectos utilizassem código da empresa para o seu desenvolvimento: um grupo de artistas decidiu criar uma exposição paralela, acessível apenas a partir das imediações do Barbican, onde é defendida uma visão menos corporativa da intervenção tecnológica na criação artística [9].

Face ao exposto, compreende-se que a inclusão de «metodologias de trabalho com recurso a «novos média» em práticas artísticas contemporâneas esteja longe de ser uma problemática com contornos definidos. A distinção, se é disso que se trata, entre obras que abordam enquanto tema a ubiquidade digital na cultura contemporânea, e obras que se servem «apenas» da tecnologia para a sua elaboração, não parece tão pouco ser um exercício intelectual esclarecedor. Os comentários de Edward Shanken [10] a esse propósito são claramente ilustrativos dos contornos nebulosos desse debate. Dando conta de um painel, por si organizado e presidido, que decorreu na edição de 2011 da Art Basel, e que contou com a participação de nomes como Nicolas Bourriaud e Peter Weibl - personalidades absolutamente relevantes para a formação do discurso contemporâneo – Shanken faz questão de sublinhar a separação existente entre aquilo que denomina de New Media Arts (NMA) e Mainstream Contemporary Art (MCA). Shanken, sem qualquer surpresa aliás, parece ser particularmente crítico face à posição - a seu ver preconceituosa - de teóricos como Bourriad, que valorizam a contribuição das novas tecnologias no que diz respeito à produção artística propriamente dita, mas que relativizam e ignoram a “utilização explícita da tecnologia enquanto meio artístico de próprio direito” [11].

Na medida em que nos é permitido acompanhar o impulso utópico que define parte significativa deste paradigma digital, imagine-se então um futuro onde a criação artística se movimente à velocidade do pensamento, numa subversão surpreendente daquela visão proposta por Bill Gates e plasmada na célebre publicação Business @ The Speed of Thought.


José Raposo

 

 

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Notas
[1] David Gere (2008). Digital Culture 2.0. London: Reaktion Books. p.17
[2] AAA é o «valor» mais elevado da escala de classificação utilizada pela indústria de vídeo jogos para categorizar as produções de acordo com os custos de produção e promoção.
[3] O artigo está disponível online: https://artforum.com/inprint/issue=201207&id=31944&pagenum=0
[4] Valerá a pena acompanhar a discussão na caixa de comentários.
[5] Inherently alien, é a expressão no inglês original.
[6] Esta posição é também reflectida na argumentação seguida por Honor Harger em http://honorharger.wordpress.com/2012/09/02/why-contemporary-art-fails-to-come-to-grips-with-digital-a-response-to-claire-bishop/
[7] No sitio online que acompanha este segmento da exposição, e onde pode ser acompanhado o desenvolvimento dos projectos selecionados, é patente um tom pedagógico e educativo, numa tentativa nítida de “desmistificação”: https://devart.withgoogle.com
[8] As obras estão disponíveis para consulta/download no seguinte endereço: http://lincoln3dscans.co.uk/
[9] Exposição e respectivo manifesto acessíveis em http://hacktheartworld.com/
[10] Editor de Art and Electronic Media. 2009. Londres: Phaidon.
[11] Edward Shanken apud Domenico Quaranta. Beyond New Media. 2013. Brescia: Link Editions.