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ESTATÍSTICAS, MUSEUS E SOCIEDADE EM PORTUGAL - PARTE 2: O CURTO PRAZOLUÍS RAPOSO2017-01-31
Perguntava-me no texto anterior se existem medidas no plano restrito das políticas museológicas que possam combater o elitismo social que continua a existir, e feitas as devidas correções resultantes da massificação da educação, talvez se tenha acentuado, no universo dos visitantes dos museus de arte, mormente os mais tradicionais, como são os de estatuto nacional. Penso que existem, de facto: ampliação das margens de gratuitidade, reconsideração das programações (e planeamento de oferta expositiva conjunta, nomeadamente nos grandes centros urbanos, permitindo a apresentação em Portugal de exposições internacionais), aprofundamento dos estudos de públicos, para melhor os caracterizar e chegar aos rebarbativamente chamados “não-públicos”. A primeira destas medidas é certamente a que reveste maior intencionalidade política, como se viu recentemente entre nós. Pela chamada “porta do cavalo”, ou seja, em sede de orçamento de Estado para 2017, foi aprovada mais uma reversão das políticas do Governo anterior, retomando-se a gratuitidade dos museus públicos em todos os domingos e dias feriados, até às 14 horas. Curiosamente, PSD e CDS votaram a favor desta proposta do PCP, que o BE acompanhou, ficando o PS isolado na sua rejeição. Parece que esta medida causa engulhos, uns de natureza “técnica”, outros de índole “filosófica” (termo usado pudicamente para não dizer ideológica). Quanto aos primeiros, dizem-nos que talvez a gratuitidade tenha de ser alargada a todos os cidadãos da EU – no que terá como consequência uma significativa perda de receita, somada a um porventura excessiva carga de visitantes em certos locais. Julgo que nenhuma destas objeções é verdadeiramente atendível: a receita perdida não é assim tão relevante e poderia ser compensada de outras formas (lojas, serviços adicionais pagos, etc… e, claro, maiores transferência do OE para os museus); o excesso de visitas, que somente terá significado em reduzido número de locais, pelo estabelecimento de limites e marcação prévia, como já acontece em muitos monumentos e museus no estrangeiro. Quanto aos segundos, diz-se que o pagamento é condição de valorização das coisas (“só se dá valor ao que se paga”) e sobretudo seria muito ingénuo pensar que só por tornar as coisas mais baratas, mesmo gratuitas, elas passam a ser melhor apreciadas. Discordo em absoluto da primeira destas objecções, que releva basicamente de ideologia liberal ultra-mercantilista (também as bibliotecas não são pagas e nem por isso lhes atribuímos menos valor). Mas considero pertinente a segunda, aliás como já o faziam Bourdieu e Derbal, depois de defenderem maiores incentivos à visita dos museus: “Nada seria mais ingénuo, em todo o caso, do que esperar que da mera redução dos preços de entrada um crescimento da frequentação por parte de classes populares.” Parece-me, pois, que para além da gratuitidade universal em certos períodos e porventura a somente alguns espaços (exposições permanentes, por exemplo) deveria sobretudo existir uma política esclarecida de promoção da visita pelos portugueses, através de medidas mais estruturantes, na escolas e na vida em geral, políticas essas servidas por instrumentos simples e eficazes, para o que bastaria talvez apenas pensar estas matérias “fora da caixa” e ouvir quem “anda no terreno”. Por exemplo: o “cartão + cultura”, algo enigmático e potencialmente inútil que o programa deste governo contempla, poderia realmente ser tornado vantajoso (e não mera promoção de entidades patronais e agentes do mercado das chamadas “indústrias culturais”) se fosse usado para estabelecer discriminações positivas em função do IRS (desde a gratuitidade total até reduções variáveis de preços), sendo atribuído sob pedido dos cidadãos em repartições de finanças e/ou autarquias locais. Não haveria aqui conflito com a legislação europeia porque não se trataria de medida universal; e alcançar-se-ia o principal objetivo de democratização que realmente se torna absolutamente imperioso e urgente. Com efeito, os dados do INE sobre estatísticas culturais relativas a 2015 (vejam os três gráficos em anexo), publicados no final do ano, acrescidos dos que a DGPC divulgou no início de Janeiro, referentes a 2016, vieram confirmar, no curto prazo, o que os elementos do longo prazo referidos no meu anterior texto já tinham amplamente demonstrado. Como já pensávamos, e mesmo para o conjunto de todos os museus, ou seja, incluindo a grande maioria dos que se relacionam com comunidades locais e por isso resistem melhor à “crise”, as percentagens de visitantes nacionais têm vindo a decrescer, com o contraponto do aumento dos estrangeiros, realidade que surge extremada no subconjunto dos “grandes museus”. Neste caso, em 2016 pela primeira vez desde que há estatísticas, os museus nacionais foram visitados por mais estrangeiros do que portugueses – ocorrência que deveria fazer soar todas as campainhas e não ser quase ignorada, submergida pelo clima de “sempre em festa” em que as chamadas chefias se comprazem no ritual de mostrarem bons desempenhos. A isto acresce a situação verdadeiramente catastrófica ocorrida com os públicos escolares: segundo os dados do INE (infelizmente a DGPC deixou se sentir-se obrigada a fornecer estatísticas detalhadas e por isso este valor não é conhecido), uma queda percentual a pique, apenas com ligeira recuperação em valores absolutos nos dois últimos anos. É certo que existe alguma retoma de visitantes portugueses, mesmo escolares, nos últimos anos – mais ainda longe, quer em valores absolutos, quer sobretudo quanto à estrutura de visitantes, medida em percentagens, do que apesar de tudo existia “antes da crise” – sendo que esta era já de si altamente desapontadora, pelo elitismo que representava. E claro que a ampliação das margens de gratuitidade não resolve os problemas de fundo nesta área. É preciso fazer mais e fazer diferente. Os museus, pelo seu lado, têm procurado actuar como podem, operando quase milagres. Os dados do INE são aqui mais uma vez elucidativos: não obstante as reduções de pessoal e de recursos financeiros, por vezes draconianas, a tendência dos últimos anos, igualmente representada em gráfico que acompanha este texto, foi para o aumento das atividades (com a única exceção das remodelações de exposições permanentes), aumento especialmente notável precisamente nos dois domínios em que se verificaram maiores debilidades: ações com adultos e oficinas educativas. Mas não chega esforçar-se, mesmo muito, com denodado espírito escutista ou verdadeiro cometimento cívico. São necessárias políticas governativas mais amplas. Os museus devem ser verdadeiramente entendidos como aquilo que são: reservas de soberania e instrumentos de desenvolvimento social, mas também económico. Não é sequer necessário “inventar a pólvora” para saber o que tal significa em termos de políticas interministeriais. No caso das escolas, por exemplo, é preciso estabelecer ligações com a chamada “acção social escolar”, que deve incluir os museus no conjunto das suas ferramentas educativas; é ainda preciso recriar as condições que permitam aos professores retomar o hábito de levar os alunos aos museus – o que hoje é quase impossível (não apenas por questões financeiras, note-se, mas por toda uma burocracia criada e verdadeiramente infernizante). No caso dos grupos sociais mais desfavorecidos, é necessário instituir “pontes” de relação direta entre os museus e toda a rede pública (ou privada) de segurança e assistência social – o que pode ser suportado pela afectação aos museus de algumas verbas provenientes das lotarias (como acontece no Reino Unido, por exemplo). No caso da educação cívica mais ampla, é altura de reconhecer o impacte imenso dos museus e monumentos nos fluxos de visitação do País, nomeadamente turísticos, e daí retirar as consequências quanto à sua inserção nos planos estratégicos do sector e adequado financiamento no âmbito dos mesmos. Políticas integradas de governação e planos, fazem falta, pois. Mas acima de tudo as palavras de ordem devem ser a de desburocratizar, requalificar e autonomizar. Voltaremos a elas em próxima oportunidade.
Luís Raposo |