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TANTO MAR - ARQUITECTURA EM DERIVAçãO | PARTE 2FILIPA COIMBRA2014-05-06[Esta é a segunda parte do artigo Tanto Mar - Arquitectura em DERIVAção sobre a exposição Tanto Mar. Portugueses Fora de Portugal, patente na Garagem Sul do CCB, Lisboa.] A continuidade e descontinuidade das geografias, dos contextos políticos; da abundância e escassez económicas; e as variações dos ritmos de desenvolvimento urbanístico, desde há muito, contribuem para a volatilidade da «arquitectura social». Ao longo desta descontinuidade da sua história, a «arquitectura social» tem conhecido impulsos variados na visibilidade e discussão que tem provocado tanto a nível disciplinar, como em torno da sociedade. Retomada amplamente na actualidade falamos, então, de uma arquitectura em derivação a partir do prefixo «RE-», sem com isto querer dizer que a sua prática tenha sido alguma vez interrompida. A exposição Tanto Mar, re-situa estas práticas, cartografando-as e expandindo também o terreno de debate sobre as fundamentações que lhe estão por base, que não é alheio ao ambiente político, económico no Ocidente (Europa e EUA) e às suas implicações e respostas sociais. Anteriormente adiantámos, de forma genérica e mediante considerações de base empírica, que no presente, estas práticas se demarcam da efervescência reivindicativa das décadas de 1960-70. É na multidisciplinaridade, nos contactos informais de afinidades e no networking que reside parte da sua força mobilizadora. Não queremos com isto dizer que estas práticas são hoje completamente apolíticas, nem mesmo que o desenho da exposição se mantenha à margem de uma orientação política. Boa parte destas experiências além-fronteiras derivam da crise, assumindo-se como uma hipótese face ao actual panorama de estagnação da encomenda em território nacional, diametralmente contrastante com um número crescente de profissionais qualificados. Pertencemos a uma Europa que se encontra agora no rescaldo da “loucura [pseudo] juvenil dos museus e dos estádios”.[7] Uma Europa envelhecida e avarenta que, tomando a crise de 2008 como bode expiatório, pôs em marcha um desgastante plano de austeridade aplicado aos Estados-membros, particularmente a sul e, dramaticamente em Portugal. É evidente que não podemos desligar completamente os factos políticos destas práticas, nem que seja implicitamente. Arriscar-nos-íamos mesmo a dizer que em Tanto Mar há um discreto “cheirinho a alecrim” que vem de alguma “semente [esquecida] nalgum canto do jardim”, dessa mensagem de esperança contida na música composta por Chico Buarque em 1975 a respeito da Revolução de Abril em Portugal do ano anterior e numa altura em que o Brasil vivia em plena ditadura militar – música esta, que tem título homónimo ao da exposição. [8] A própria escolha na apresentação do levantamento de dados sobre a emigração em Portugal, para referir a actual situação dos arquitectos portugueses – e que lança dessa forma o próprio repto do projecto – pode ter também uma leitura política, assim como as referências teóricas que são apresentadas na exposição sugerem também essa imbricação com estas questões, não estivéssemos nós no terreno do «social». [Fig. 6] Segundo as palavras do sociólogo francês Alain Caillé: “Não há outro objectivo político admissível que não seja o de permitir a uma pluralidade de homens e de interesse conflituais que coexistam, inventando um destino comum. A aposta propriamente democrática é que a melhor maneira de garantir essa coexistência e de fundar um elo social poderoso, longe de reprimir e negar a discórdia, é dar-lhe todos os meios de se fazer ouvir.”[9] A arquitectura constrói este «destino comum» e este «ouvir» em arquitectura comporta, por conseguinte, uma dimensão e acção políticas. Vinculada na horizontalidade, no envolvimento colectivo, na proximidade e no diálogo, tratam-se de experiências altamente democráticas, implicitamente democratizantes e que, consequentemente, demarcam um posicionamento político, sem que muitas das vezes os próprios protagonistas – arquitectos e comunidades – tenham sobre esse aspecto uma noção demarcada. Esta posição não sendo militante não é, seguramente, neutral: ao agirem sobre, e principalmente com a sociedade trazem ao debate não só as problemáticas disciplinares – sobre a encomenda e as questões autorais, ... – como ainda, outras transversais, que se prendem com papel activo e efectivo das comunidades no constante redesenhar da sociedade. Certas práticas aplicadas em determinado contexto político e social assumem-se como reconfigurações da própria realidade e nessa convergência entre o visível e as significações podemos encontrar uma certa voz política. É ,então, pela auscultação e mediação que se aprofundam estas práticas – pelo «spatial agency», conceito teorizado e desenvolvido por Jeremy Till – cuja estratégia reside também no networking.[10] Um bom exemplo disso é o projecto La Légua (Vitório Leite) onde os Mobil Arquitectos se juntam à população para tentar travar o abandono, proposto pelas autoridades municipais, de um Bairro em Santiago do Chile. Através de uma parceria com o Atelier Metropolitano organizaram, numa primeira fase, visitas por parte das autoridades chilenas às favelas do Rio de Janeiro intervencionadas por este atelier, dando a conhecer boas soluções de intervenção urbana que respeitam a identidade da comunidade e que não passam necessariamente pela remoção dos bairros problemáticos, mediante investimento em processos pedagógicos, formativos e soluções pluralistas de envolvimento. Esta proposta aparentemente simples evidencia que, de facto, os efeitos da globalização produziram grandes vantagens na promoção de relações informais de networking, responsáveis por uma cada vez maior colaboração interdisciplinar e por estratégias formativas cada vez mais multidireccionais. A Casa das Baterias, na Guiné-Bissau (Pedro Novo, André Novo e Luís Leal) é outro exemplo de um projecto que revela o mesmo tipo de dinâmicas, combinando a construção do parque fotovoltaico com outras actividades formativas que ampliam, na multidisciplinaridade, a dimensão do projecto e a sua efectiva importância para a comunidade, como o documentário “Luz na Bambadinca Aós”.[11] A performatividade e frescura latente destes reagenciamentos e colaborações entre protagonistas de diferentes disciplinas, especializações e actuações sociais que pensam o espaço na sua dimensão comunitária e que lhe procuram dar soluções simplificadas, começam a surgir no informalismo da vida das cidades. No Reino Unido, o projecto Ridley’s (Mariana Pestana) é um bom exemplo disso. Resultando da articulação entre vários colaboradores é projectado, numa economia de recursos, um espaço de restauração dentro do perímetro de um mercado que antecipa estratégias de dinamização e envolvimento local. A conceptualização e construção do espaço são simultaneamente articuladas com um sistema alternativo de trocas entre visitantes-mercado-restaurante que assegura o contínuo funcionamento dos espaços e das actividades da comunidade: os visitantes compram produtos do mercado par serem cozinhados no restaurante, ganhando com isso um voucher com uma quantia a descontar na próxima visita. Esta proposta alternativa de participação em cadeia aproxima-se, num certo sentido, ao sistema de «permanente circulação de bens» desenvolvido por Marcel Mauss na teoria da Dádiva.[12] Esta utilização criteriosa e generativa dos recursos é, talvez, um dos mais interessantes desafios da «arquitectura social». Soluções com menor impacto ambiental, mais baratas e que integrem os recursos disponíveis local ou regionalmente, são algumas das preocupações tidas pelos arquitectos, veja-se o exemplo de envolvimento da comunidade de Chuquibambilla, no Peru (Paulo Afonso), na criação de adereços e equipamentos para a nova escola, essencialmente através do emprego de materiais locais. Esta aposta na conexão afectiva das comunidades com os lugares é explorada em muitos outros projectos, integrando o potencial vernacular com os processos de construção modernos, alinham na mesma direcção apontada por Hassan Fathy no seu Architecture for the Poor: An Experiment in Rural Egypt e posta em prática pelo arquitecto egípcio em Gourna, já em meados da década de 1940. Outro bom exemplo é o projecto Manica Football For Hope Center em Moçambique (Alina Jerónimo e Paulo Carneiro) que, para além da sensibilização na utilização dos recursos naturais na construção do centro comunitário, criam uma resposta que permite travar, em parte, a desflorestação regional, formando a população no fabrico de blocos terra comprimidos estabilizados (BTCE) em alternativa aos tijolos de barro cozido. Dotando a população dos conhecimentos técnicos e das práticas construtivas insistem na ideia do DIY (do-it-yourself – Não no sentido da individualização mas na autonomização e circulação do conhecimento), cada vez mais explorado nestes projectos de arquitectura comunitária e herdeiro dos manuais de Yona Friedman. Ainda dentro desta questão da inteligência e criatividade na utilização dos recursos materiais, mesmo quando o seu acesso é limitado ou escasso, a acuidade estética não é negligenciada. São muitos os exemplos na exposição que conciliam estes aspectos, como é o caso da Faculdade de Enfermagem e Fisioterapia de La Salle (México) projectado pelo Arq. João Caeiro, onde as soluções técnicas e materiais, exploram uma visualidade e plasticidade que se funde com a própria temática: a conjugação de vários materiais locais nos revestimentos, cobertura e acabamentos produz efeitos de sugestão temáticos – coluna vertebral, (padrões/materiais sobrepostos) massa óssea (articulação do bambu com o aço) e até elementos da fauna local (composição de diferentes texturas). Há, de facto, tanto mar para explorar! A heterogeneidade dos projectos é imensa, mas há, contudo, uma evidência: em todos eles a «apropriação», esse tomar o espaço pela comunidade há muito instigado por Lefebvre, é transversal. De uma forma espontânea e informal, Tanto Mar, concretiza o que é a articulação da arquitectura com os dois prefixos – “CO-” e “RE-”, um mais orgânico, outro mais analítico, respectivamente. Não procura dar respostas para além das prementes – sem que para isso tenha que sacrificar a sua criatividade, muito pelo contrário, activa-a – e é nessa displicência disciplinar, inversamente proporcional ao seu envolvimento social e diálogo multidisciplinar que reside o seu dinamismo. Senta-se com as associações e comissões de moradores; nos bancos de Saint-Nazaire a discutir o urbanismo da cidade; numa fortaleza do séc. XVI a projectar uma cisterna; a ensinar e a fabricar tijolos para as paredes do centro de assistência e sensibilização juntamente com as mulheres de Burkina Faso; senta-se também em estruturas mais improvisadas em campos de refugiados a consciencializar e a formar. Mais do que nos grandes congressos dedicados às “eminentes questões” disciplinares, são estes os espaços e os actores nos quais, e com os quais querem ter, e partilhar assento. Em Tanto Mar, mais do que uma arquitectura sem nomes, falamos de uma arquitectura sem egos. É a arquitectura da despretensão e derivação, da recusa de se afirmar como tendência, de ser organizada, de ser doutrina, de ser rotina. Ela não se centra, nem concentra em pensar-se: sai de si, circunda-se, mistura-se e age colectivamente. :::: Filipa Coimbra é licenciada em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e mestre em Crítica de Arte e Arquitectura pelo Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. :::: NOTAS [7] Jorge Figueira, “Out of the box: para sul e para oriente. Notas para uma nova geografia da crítica\", PLI* Arte 6 Design, 4, 2013. [8] Existem duas versões da mesma música compostas pelo autor, uma de 1975 e a outra de 1978 cuja comparação é interessante ser feita. Podem ser ouvidas em: http://www.youtube.com/watch?v=V7JXlmE60r0 [9] CAILLÉ Alain, A Demissão dos Intelectuais – A Crise das Ciências Sociais e o Esquecimento do Factor Público, trad. Armando Pereira da Silva, Col. Epistemologia e Sociedade, Instituto Piaget, Lisboa, 1997, p. 285. [10] Ver AWAN Nishat, SCHNEIDER Tatjana, TILL Jeremy, Spatial Agency. Other Ways of Doing Architecture, Routledge, 2011. [11] O documentário resulta de um workshop de vídeo dirigido a 7 moradores da comunidade que consistiu na aprendizagem em 4 dias de algumas técnicas de vídeo reportagem, para seguidamente darem início a uma série de entrevistas junto da população de Bambadinca, sobre a problemática do acesso a energia eléctrica. [12] O antropólogo Marcel Mauss desenvolveu a Teoria da Dádiva a partir dos relatos de Malinowski sobre o sistema de trocas nas sociedades arcaicas. Desenvolvendo a ideia de uma cadeia de trocas em permanente circulação (Kula) que consiste na obrigação de dar, de receber e de restitui. Ver MAUSS, Marcel, Ensaio Sobre a Dádiva, Edições 70, Lisboa, 2011, p. 93. :::: [a autora escreve de acordo com a antiga ortografia] |