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OPINIÃO


Lucrecia Martel, La Cienaga, 2001. Fotograma.


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A PROPÓSITO DE LA CIENAGA DE LUCRECIA MARTEL (SOBRE TEMPO, SOLIDãO E CINEMA)



FILIPE PINTO

2010-06-09




A PROPÓSITO DE LA CIENAGA DE LUCRECIA MARTEL
(Sobre Tempo, Solidão e Cinema)


Texto apresentado por ocasião da projecção de La Cienaga (O Pântano) de Lucrecia Martel na Livraria Trama, em Lisboa, no dia 21 de Maio de 2010



1.

Começo por dizer que não vou aqui contextualizar o filme, isto é, falar do lugar cultural e político de onde provem; não me vou referir ao chamado cinema novo argentino, do qual aparentemente Lucrecia Martel faz parte, nem da decadência da classe média desse país, que supostamente é retratada neste Pântano, nem das tensões raciais que perpassam todo o filme.

Também não me debruçarei sobre o assunto, sobre o tema do filme, seja ele qual for; na verdade, o movimento habitual pela procura do tema de um filme, como se fosse uma espécie de intriga policial em busca de um significado, foi sempre algo que me interessou pouco; por duas razões:

Se admitirmos que uma obra de arte ou um filme tem um tema, não haverá melhor pessoa para o desvendar do que o próprio autor – e a palavra do autor aprisiona sempre a experiência, cria um escantilhão para percepção: ora, a demanda pelo assunto de uma obra pode ser sempre infrutífera, enganadora, frustrante. Claro que se poderá dar o valor ao movimento de procura e não à sua conclusão, mas aí o ponto de partida será ele mesmo já enganador – perguntamos e perguntamos e vamos respondendo, sem no entanto fazermos sequer ideia se nos aproximamos ou não do fulcro; e a bem dizer, sem isso nos interessar verdadeiramente.

Enfim, e se se quiser, vejo a experiência artística como algo bem diferente de uma investigação policial, bem diferente de uma busca pela suposta verdade de uma obra, uma verdade que tem um autor, uma verdade autoritária.

A segunda razão que me faz obviar a busca por um tema, por essa verdade não explícita, é mais política e, parece-me, mais determinante. Quando, à frente de uma obra, nos perguntamos sobre o que isto quer dizer, ou o que quis o autor dizer com isto, estamos de facto a adoptar uma atitude de total subserviência em relação à obra, ao autor e à sua intenção.
Quando perguntamos o que quer isto dizer, o que quis o autor dizer com isto, esquecemo-nos de nós próprios, adoptamos um altruísmo que raras vezes é recompensado, que raras vezes se depara com algo que lhe mude a vida, ou um instante, que raras vezes enfim, se depara com um acontecimento.

Ao contrário, eu creio que a pergunta certa a fazer-se à frente de uma obra de arte, de um livro, durante ou depois de um filme, é, para que serve isto?, como posso eu utilizar isto? ou, tem isto lugar no meu mundo? Só assim, digo eu, pode a arte ser útil, isto é, entranhar-se na vida; o mesmo é dizer, arriscaria, só assim pode a arte ser importante.(1)

2.

No anúncio desta sessão lia-se “Apresentação a cargo de Filipe Pinto”; pois bem, esta apresentação é particularmente pessoal, como que a justificar o nome próprio incluído no anúncio.

O que já falei e o que vou falar resulta dos seguintes pressupostos – O que penso eu por causa deste filme?, Para que me serve este filme? Não vou pois falar tanto sobre o La Cienaga, mas mais sobre o que este filme me faz falar. Sendo uma apresentação pessoal, com isto pretendo que vejam o filme um pouco como eu – é uma tentativa de engendrar algo próximo de uma língua comum, uma experiência comunitária, uma tentativa talvez desesperada de comunicação.

3.

Sempre que vi este Pântano, acabei a pensar no tempo, e aqui especifico, tanto no tempo atmosférico como no cronológico. Logo no princípio reconhecemos o calor, a atmosfera tépida, a humidade espessa, o suor viscoso – tudo isto obriga a uma lentidão dos corpos, a um torpor decadente. Por coincidência, comecei a pensar nesta apresentação naqueles dias de calor obsceno de Abril passado, e, ao mesmo tempo, lia no diário de Vila-Matas, “Detesto o Verão, o suor das sogras de perna aberta pelas areias do circo das praias, os arrozes ao sol, os lenços para o suor. Parece-me que o frio é muito elegante e ri-se de uma maneira infinitamente séria. E o resto é silêncio, vulgaridade, fedor e sebo de casa de banho. Fascinam-me os corpos suspensos no ar. Amo as ventanias, a luz espectral da chuva, a geometria acidental da brancura das paredes desta casa, onde reina o mais gélido frio existencial.”(2)

Lembrei-me também que T. S. Eliot começa o poema The Waste Land com o verso April is the cruelest month; talvez se tenha enganado, talvez seja o Agosto, tão querido de alguns, a mensalidade mais impiedosa e severa. Agosto, apesar do descanso e liberdade que lhe parecem intrínsecos, é o mês mais excessivo – se lhe acontece a felicidade e a plenitude, serão as mais admiráveis e luminosas de todo o ano; da mesma forma, se nele sucede o desgosto – que rima tão bem com o seu nome –, será o mais penoso, com o calor do sol a avivar-lhe a ferida, a fazê-la arder, a encarniçá-la, a torná-la mais consistente e duradoura.

E é também em Agosto, por exemplo nestas mesmas ruas de Lisboa, aos domingos – que são o Agosto da semana –, nessa altura tão silenciosas e áridas, que perante o pino do sol, podemos ver com clareza a dimensão da nossa solidão – na claridade obscena, a distância fica visível como nunca. Nesta solidão iluminada pela luz quente do sol, olhamos em volta e nem vivalma nem sombra; ninguém atravessa a canícula – um deserto; o sol desertifica. Assim em jeito de ginástica adolescente, eu diria que o sol exala, exila, isola.

4.

La Cienaga não é passado em Lisboa, claro, nem sei bem se no mês de Agosto, mas dois dos elementos que percorrem todo o filme são o calor denso e a solidão de todos as personagens; solidão que é referida repetidamente por Martel quase como sendo a própria causa do seu cinema. E cito, “(…)estou convencida de que se nasce e se morre sozinho no corpo. Nunca há possibilidade de alguém ocupar o corpo de outro. Essa solidão inerente à condição humana parece-me que pode ser interrompida, por segundos que seja, através do cinema, através de certas experiências narrativas. O cinema para mim são duas horas em que, com sorte, consigo colocar o espectador no corpo de outra pessoa.”

Ainda sobre esta solidão – tema recorrente, claro –, cito uma passagem de um texto meu, “Temos o nosso corpo limitado, antes de mais nada, pela pele. Ao espelho, a criança, ainda com os movimentos balbuciados, reconhece o seu corpo íntegro e uno, mas, acima de tudo, reconhece-o independente do da mãe. Será talvez a primeira tragédia que vivemos. Podemos adivinhar, naquele relance fugidio, a nossa solidão perpétua, os seres separados, distanciados, que somos – amizade, amor, ou sexo são tentativas de confundir os limites dos corpos, mas a pele acaba por prevalecer; ‘Aproximámo-nos mais um do outro, tanto quanto a pele nos permitia’”, como escreveu Botho Strauss. “E é pela pele que nos fechamos em nós próprios, na lástima e no definhamento; ou pela pálpebra – finíssima pele – no desmaio e no sono. E no pensamento, a olhar para dentro a olhar para fora. Em suma, a pele assegura a respiração do corpo e o toque do mundo – o con-tacto, se quisermos – mas deixa incólume a nossa solidão congénita.”(3)

5.

A solidão faz então ver o espaço – explicita o vazio que nos distancia –, mas também serve para mostrar o tempo, para fazer estender o instante, ou para o parar. Heidegger talvez escolhesse o tédio, mas mesmo o tédio se pode instalar quando estamos acompanhados, aliás como o próprio Heidegger mostrou.

Nos filmes de Lucrecia Martel, e neste em particular, o tempo faz-se sentir pela solidão apática, pela inércia das personagens, mas também pelo próprio elemento que dá nome ao filme – o pântano, a piscina, essa água estagnada e pútrida.
Martel tem mesmo um discurso sobre as piscinas, e cito: “Não me tinha dado conta de que era um lugar tão fascinante, sobretudo porque me enojam. Gosto de nadar no rio, no mar. Mas a água parada faz-me impressão. Mas há outra coisa que me aterroriza: na cidade onde vivo, Salta, o acesso à água não é fácil. Uma piscina é um enorme privilégio. E parece-me que há um enorme egoísmo numa piscina. Elas devem existir quando são públicas, mas quando são privadas representam um egoísmo, porque esse pequeno paraíso deve ser para todos, tal como a saúde, a educação. O que é revolucionário é que os lugares para os prazeres, a preguiça, sejam de todos. Só assim estaremos um passo à frente na evolução espiritual do homem. E há uma coisa concreta: enquanto as pessoas com poder de compra constroem o seu paraíso artificial, descuidam-se os rios, os mares, os lagos, o acesso público à água deixa de ser importante. Em volta de uma piscina há muitas coisas a dizer sobre o estado do mundo. E o que é que me interessa nas piscinas? Essa conexão dos corpos que produz a água, que se parece muito com o som. Uma piscina é muito parecida com uma sala de cinema. O ar é um meio elástico, o som propaga-se nesse meio. Estar encerrado numa sala de cinema é como estar dentro de uma piscina. Estamos imersos. Não temos a consciência de que vivemos imersos no ar. Só o som é que nos pode dar essa consciência.”

6.

E o som é determinante nos filmes de Lucrecia Martel. Martel diz mesmo que antes de filmar pensa e trabalha o som; quer dizer, vai para a rodagem ou com o som já desenhado ou com uma ideia muito concreta do que este vai ser. La Cienaga começa, logo no genérico inicial, com o som da floresta, os cicios dos insectos, grilos, cigarras, o esvoaçar das copas, o canto dos pássaros; todo este ambiente sonoro acompanha o filme, com excepção das cenas na cidade; e acompanha-o sempre em off-screen.

Este expediente alarga o fotograma, o plano, o próprio cinema – temos uma cena interior, mas ouvimos os trovões lá fora, os tiros da caça, os animais, como se se quisesse contrabalançar os corpos mortos-vivos das personagens com a vida da Natureza esfuziante lá fora. E este som fora do plano liberta o próprio filme da ditadura da câmara, que normalmente aponta para os gestos da acção, e assim, liberta também o espectador, que percebe algo mais do que vê – recebe o som invisível como uma opção, uma linha de fuga.

7.

E o que vemos nós em La Cienaga? Este filme não nos conta uma história – na lógica aristotélica, não encontramos aqui nem nós nem os respectivos desenlaces, apenas episódios; a acção vai passando de personagem em personagem, sem nunca se reter verdadeiramente em nenhuma, (embora possamos ver Mecha como uma espécie de protagonista).

Mas ainda assim, trata-se claramente de um filme trágico; trágico e violento; a morte e o sangue estão omnipresentes – a vaca presa à morte certa, a lebre na cozinha, o cão assustador que nunca se vê – off-screen, claro, (o susto e o desejo são sempre mais consequentes quando não se tem acesso directo ao seu objecto, quando este não se deixa ver), os disparos das armas e da tempestade que ameaça, a caça, a pesca à catanada, a já falada tensão racial, etc; e quase todas as personagens apresentam cicatrizes, feridas, sangue, rastos de sangue, imperfeições – corpos cariados, diria Lispector; o corpo é aqui filmado sempre em queda, e, na verdade, o filme quase se inicia com uma queda de um corpo, e quase acaba com uma queda de outro corpo; mas a tragédia permanece muda.

Aqui nada se passa, os corpos dormentes arrastam-se e caem, ferem-se e morrem, mas a tragédia, de tão quotidiana e dolente, é-nos mostrada com indiferença, sem gritos, sem pânico – resignação e habituação parece ser o que se lê.

8.

Martel faz um filme sem história, e em espelho, com uma dobra algures no meio; acaba como começa, como se nada se tivesse passado, com se La Cienaga fosse uma fotografia, algo parado mas com som, e é afinal esse som que denuncia a duração, o movimento, o tempo do filme.

Este cinema não sofre os incómodos da narrativa; enquanto espectadores, não somos puxados pela trela do encadeamento narrativo. Com este filme temos uma experiência de cinema, sem sermos desviados por uma história qualquer. A história faz-nos distrair do cinema; distrai-nos do seu tempo, do seu movimento. Numa história estamos sempre a recordar o que se passou e a imaginar o que se poderá passar, a temer ou a ansiar, um final trágico ou um happy end, perda ou angústia, felicidade ou espanto; estamos, diria, sempre a falhar o Presente irrequieto e fugidio que é o tempo do cinema – irrepetível, imparável, irreparável.

“O Irreparável é o facto de as coisas serem como são, deste ou daquele modo, entregues sem remédio à sua maneira de ser. Irreparáveis são os estados de coisas, sejam elas como forem: tristes ou alegres, cruéis ou felizes. Como és, como é o mundo - é isto o Irreparável”, escreveu Agamben.(4)

Claro que poderemos ler em todas as cenas de La Cienaga um indício de algo não manifesto; tal como o ciumento ou o paranóico, poderemos ver o todo na parte, mas nesse caso estaremos a encarar o filme como um resumo, uma condensação espartilhada por imperativos de metragem ou outros. Ao contrário, eu acho que poderemos ver o filme como algo completo e explícito; como algo que é assim mesmo, e que quando acaba, acaba mesmo; irreparável.

La Cienaga propõe-nos uma experiência, um estado – a história não interessa nada.


Filipe Pinto


NOTAS

(1) A propósito desta questão, ler o meu ensaio “Para uma Crítica da Interrupção” na ARTECAPITAL, em www.artecapital.net/opinioes.php?ref=93

(2)Enrique Vila-Matas, Diário Volúvel, Lisboa, Editorial Teorema, 2010, p.76.

(3) Filipe Pinto, Fotografias da Distância, em www.lightinthefridge.blogspot.com/2009/06/sobre-fotografia-e-pele.html

(4) Giorgio Agamben, A Comunidade que Vem, Lisboa, Editorial Presença, 1993, p.71.