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MARK LEWIS E A MORTE DO CINEMATERESA CASTRO2010-04-30MARK LEWIS E A MORTE DO CINEMA A propĂłsito de dois filmes de Mark Lewis projectados durante o Indie Lisboa, Cinema Museum (2008) e Backstory (2009). Em 2008, ano da sua realização, Cinema Museum constituĂa na obra do canadiano Mark Lewis uma espĂ©cie de âobjecto fĂlmico nĂŁo identificadoâ. Rompendo com o formato caracterĂstico do trabalho mais recente do artista, que desde 2000 produz essencialmente filmes curtos e silenciosos, Cinema Museum documenta uma visita guiada a uma colecção de memorabilia cinematogrĂĄfica. Fundada por Ronald Grant, esta Ășltima constitui uma verdadeira caverna de Ali BabĂĄ perdida no sul de Londres e reunindo os tesouros pacientemente acumulados por um coleccionador compulsivo: desenhos, posters, adereços, fotografias, revistas, recortes de imprensa, emblemas, lanternas de arrumadores de salas e uma parafernĂĄlia de outros objectos. Mark Lewis conta ter descoberto a colecção de Grant por acaso: intrigado com a existĂȘncia dum autoproclamado âmuseu do cinemaâ nos arredores de sua casa (Lewis reside na capital britĂąnica hĂĄ vĂĄrios anos), decide aĂ realizar um filme. NĂŁo sendo a primeira vez que o artista assina um documentĂĄrio (1), Cinema Museum parece distanciar-se dos restantes trabalhos de Mark Lewis que desde os anos noventa realizou vĂĄrias dezenas de filmes explorando formas fĂlmicas precisas: movimentos de cĂąmara, efeitos especiais ou formatos particulares, como o genĂ©rico. Projectados em museus ou galerias de arte, estes trabalhos ilustram um fenĂłmeno que alguns designam hoje por âmigração das imagensâ: a passagem das imagens em movimento das salas de projecção em direcção aos espaços de exposição (2). Se Cinema Museum se distingue das obras anteriores de Lewis, o filme constitui uma composição em abismo desta penetração do cinema no espaço museolĂłgico, inscrevendo-se assim na continuidade crĂtica do seu trabalho. Mais do que a descoberta de uma estranha colecção por parte de um artista, o filme documenta uma visita do prĂłprio Cinema, com o seu cine-olho autĂłnomo e curioso, a um museu do cinema. Trata-se dum cine-olho mecĂąnico, Ă semelhança daquele que Dziga Vertov elogiava em 1923 num manifesto hoje cĂ©lebre, onde o âeu-mĂĄquinaâ da cĂąmara de filmar prometia revelar um mundo desconhecido, como sĂł ele o conseguia ver (3). O tempo era entĂŁo o de todas as proezas: do cine-olho vertoviano Ă Entfesselte Kamera («cĂąmara descontrolada») de Murnau, passando pelas experiĂȘncias de Abel Gance ou de Jean Epstein, nunca a utopia do olho cinematogrĂĄfico foi tĂŁo forte. DĂ©cadas mais tarde, o cine-olho da cĂąmara de Lewis continua a desafiar as leis da gravidade, percorrendo em longos e fluidos planos sequĂȘncia os corredores labirĂnticos da sua prĂłpria memĂłria (4). Conduzido pela voz da guia, desvia-se a pouco e pouco do percurso que lhe Ă© proposto. Sintoma da sua vocação errante, este descentramento entre voz e visĂŁo surge como a manifestação da vida inteligente da cĂąmara de filmar. No contexto da visita guiada, o cine-olho de Lewis aparenta-se mesmo Ă figura do âespectador emancipadoâ, tal como definida por Jacques RanciĂšre (5). Pondo em causa a oposição entre olhar e agir, o cine-olho Ă© um cĂ©rebro que pensa. Mas Cinema Museum nĂŁo ilustra apenas a surpreendente âinteligĂȘncia de uma mĂĄquinaâ, para parafrasear Jean Epstein: passeio de Lewis na colecção de Grant constitui um confronto do Cinema com a consciĂȘncia da sua prĂłpria mortalidade. Esta hipĂłtese remete para dois elementos: por um lado, o discurso que reconhece no museu uma variante da necrĂłpole (e a ideia de que a excĂȘntrica colecção de Grant seria um pitoresco monumento funerĂĄrio Ă© tudo menos estranha). Por outro lado, a noção segundo a qual a recente transformação mediĂĄtica do cinema, com a passagem do suporte pelĂcula ao formato digital, constituiria uma espĂ©cie de morte hĂĄ muito anunciada (6). Cinema Museum seria assim um estranho filme de fantasmas, âflirtandoâ com o gĂ©nero documental. A resposta de Mark Lewis Ă questĂŁo da morte do cinema Ă© ambĂgua, tal como sugere o seu documentĂĄrio mais recente, Backstory (2009). Apresentado durante a Ășltima bienal de Veneza, o filme Ă© um retrato dos Hansard, famĂlia que se dedica, hĂĄ mais de setenta anos, a realizar retroprojecçÔes para a indĂșstria de Hollwyood. Processo de filmagem permitindo rodar cenas de exterior em estĂșdio (os actores representam diante de um ecrĂŁ sobre o qual Ă© projectado um filme), a retroprojecção constitui um efeito especial hoje caĂdo em desuso, tendo sido muito utilizado por um realizador como Alfred Hitchcock. Lewis conheceu os Hansard durante a rodagem do seu filme Rear Projection: Molly Parker (2006), o seu interesse pelo processo manifestando-se jĂĄ num artigo datado de 2003, âA Film, a Painting, a Photograph: Some Notes on Pictorialismâ (7). Para o artista, a retroprojecção condensa visualmente a tensĂŁo entre o ideal de transparĂȘncia que atravessa histĂłria do cinema e a materialidade do suporte fĂlmico. Se o ideal do cinema clĂĄssico repousava sobre o efeito de realidade das imagens e a invisibilidade dos elementos fĂlmicos, a retroprojecção vem perturbar o frĂĄgil equilĂbrio deste binĂłmio, as imagens retroprojectadas surgindo ao olhar do espectador como demasiado reais, alertando-o para a natureza artificial do processo cinematogrĂĄfico. Intrigado pelo lugar central que a modernidade ocupa ainda nos discursos sobre a arte e a polĂtica (8), o interesse de Lewis pela retroprojecção constitui uma forma de questionar esse conceito. Laura Mulvey observou a esse propĂłsito que a retroprojecção partilha com a estĂ©tica da modernidade alguns atributos, entre os quais a sua âcelebração da disjunção no tempo, no espaço e na representaçãoâ (9). Fascinado pela obsolescĂȘncia do processo de retroprojecção, o trabalho de Lewis historicisa a modernidade, expondo-a como arcaĂsmo. Mas que nos diz a retroprojecção acerca da pretensa âmorteâ do cinema? Interrogando-se acerca da âfase terminalâ em que supostamente se encontra este Ășltimo, Charles Esche (co-fundador, juntamente com Lewis, da revista Afterall) afirmava num artigo que o cinema âpode reagir, reencontrar um novo vigor, desviando a atenção, tornando-se crĂtico, inteligente e consciente do seu passado no universo tecnolĂłgico e prodigioso dos efeitos especiaisâ (10). Backstory parece responder directamente a este desafio: retratando a histĂłria da famĂlia Hansard, que Lewis entrevista em estĂșdio contra imagens retroprojectadas, o filme constitui uma meditação sobre o corpo obsoleto das imagens. No contexto actual, o interesse de alguns artistas utilizando as imagens em movimento pela ideia de obsolescĂȘncia constitui uma tendĂȘncia clara, tal como o ilustram os trabalhos de Tacita Dean ou de Matthew Buckingham, para citar apenas dois exemplos. A lĂłgica destes trabalhos â e do trabalho de Mark Lewis â evoca mais as âenergias revolucionĂĄriasâ contidas no âantiquadoâ que Walter Benjamin reconheceu na prĂĄtica dos Surrealistas do que uma qualquer nostalgia (11). Surgindo aos olhos do espectador contemporĂąneo como profundamente arcaico, o processo da retroprojecção (identificado por Lewis como um epĂgono modernista) constitui um pretexto para repensar a histĂłria do cinema. NĂŁo se trata apenas de questionar uma visĂŁo tecnicista e teleolĂłgica, trazendo para a ribalta um processo relegado, mas de proceder a uma forma de arqueologia capaz de revelar tanto as utopias do passado como de salvaguardar os desenvolvimentos inesperados que nos reservam o presente e o futuro do cinema. Teresa Castro NOTAS (1) Em 1993, Lewis realizava, juntamente com Laura Mulvey, Disgraced Monuments, um filme sobre o destino dos monumentos pĂșblicos soviĂ©ticos na RĂșssia dos anos noventa. (2) Veja-se o catĂĄlogo da exposição comissariada por Philippe-Alain Michaud, Le Mouvement des images, Paris, Centre Georges Pompidou, 2006. (3)Dziga Vertov, «Conseil des Trois», Articles, journaux, projets, Paris, Cahiers du CinĂ©ma, 1972 [1923]. (4) Cinema Museum partilha com o filme A Arca Russa (2002) de Alexandr Sokurov alguns elementos, entre os quais a utilização do plano sequĂȘncia e a tematização da visita ao museu como exploração identitĂĄria (no filme de Sokurov, a identidade russa, no de Lewis, a identidade do Cinema). (5) Jacques RanciĂšre, Le Spectateur Ă©mancipĂ©, Paris, La fabrique, 2008. (6)Veja-se nomeadamente o trabalho do arquivista e historiador do cinema Paolo Cherchi Usai, The Death of Cinema. History, Cultural Memory and the Digital Dark Age, London, BFI Publishing, 2001 (7)Mark Lewis, âA Film, a Painting, a Photograph: Some Notes on Pictorialismâ, Afterall, nÂș8, Autumn /Winter 2003. (8)Veja-se um outro artigo de Mark Lewis âIs Modernity our Antiquityâ, Afterall, nÂș 12, Autumn /Winter 2006. (9) Laura Mulvey, in Cold Morning, Vancouver, Vancouver Art Gallery, 2009. (10) Charles Esche, Mark Lewis Films 1995-2000, London, Film & Video Umbrella, 2000. (11) Walter Benjamin, âLe SurrĂ©alisme. Le dernier instantanĂ© de lâintelligentsia europĂ©enneâ, Ćuvres II, Paris, Folio, 2000 [1929]. |