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DESLOCAMENTOS DA REPRODUTIBILIDADE NA ARTE: AINDA DUCHAMPLUIZ CAMILLO OSORIO2022-08-29
Há um outro segmento desta exposição inaugural, também não realizado, que me interessa discutir hoje, não obstante ser um tema lateral, complexo e que, de lá para cá, tornou-se meio anacrónico: fazer reproduções ampliadas de pinturas consagradas e expô-las junto a obras originais. Para além do valor das reproduções de pinturas, o que me interessa ao recuperar esta proposta é a sem cerimónia, contida aí, em profanar a ideia de originalidade, ou melhor, desfazer o mito da originalidade como condição essencial do valor expositivo e artístico. Em um contexto como o contemporâneo em que todo tipo de materialidade pode ganhar estatuto artístico, em que tecnologias de reprodução se renovam e multiplicam, com novos canais de veiculação das imagens digitais se expandindo, ficar colado à ideia de obra original me parece pouco produtivo, a não ser para o mercado de arte e sua obsessão óbvia com a escassez. O caso dos NFTs é emblemático. Mesmo em exposições de fotografia há um fetiche insistente em valorizar tiragens vintage, como se as impressões feitas depois da morte do fotógrafo ou sem a sua supervisão implicassem necessariamente na desvalorização da fotografia. A aura resiste da pior maneira possível, insistindo no fetiche da originalidade do artista (e não necessariamente da arte). Reproduções de pinturas históricas é outra discussão, mas durante certo momento o debate sobre o sentido de utilizá-las era pertinente, uma vez que determinadas formas de experienciá-las teriam validade independentemente de não serem substituíveis entre si. Ou seja, não se quer afirmar que as reproduções têm o mesmo valor que as pinturas originais, mas que há formas de expô-las que podem ser relevantes e há uma incorporação poética da reprodutibilidade que é importante discutir; especialmente em um momento em que o mercado tende a inviabilizar a disseminação das obras e que trazer uma referência visual de qualidade pode fazer sentido expositivo para além da presença do original. Em 1929, Alexander Dorner, diretor do museu de Hanover, na Alemanha, realizou uma exposição intitulada “Original und Reproduktion”, na qual expôs trinta e cinco trabalhos em papel de artistas consagrados ao lado de reproduções fac-similadas no mesmo tamanho e com molduras idênticas. Forçava o público a distinguir o que era cópia e o que era original. Segundo consta, a exposição causou fervoroso debate nos meses subsequentes, resultando na tentativa de expulsão de Dorner da Associação Internacional de Diretores de Museus e da proibição de se fazerem cópias de obras de arte originais. Como salientou Filipovic, “o fato de Dorner levar reproduções para o espaço museológico explicitava uma ameaça. A sua exposição assumia as reproduções enquanto um fenómeno cultural contemporâneo – fenómeno este que, no limite, punha em xeque o próprio modo de ser dos museus”. Um ano depois, em 1930, Louis Aragon fez a curadoria de uma exposição intitulada La Peinture au défi (Desafio à pintura). O aspecto central da exposição era a colagem, o modo como esta nova técnica, que introduzia no espaço da representação pictórica fragmentos colados apropriados da própria realidade, para além de multiplicar a materialidade do fazer artístico, problematizava definitivamente a ilusão tridimensional do espaço figurativo – que em seguida seria liquidado pela abstração – como também dessacralizava o campo da visualidade, absorvendo os ruídos visuais da vida cotidiana. A colagem foi a mais importante revolução nas artes de vanguarda – perpassando um campo experimental vasto que vai da pintura até o cinema, passando pela foto-montagem e pelos readymades duchampianos. Nesta exposição de Aragon, por exemplo, Duchamp apresenta duas obras, ambas tensionando a fronteira entre obra original e cópia. A primeira, intitulada Pharmacie partia de uma paisagem bem kitsch, usada para estudantes copiarem em suas aulas de arte; sobre ela Duchamp pinga duas gotas de tinta, uma vermelha e outra verde, transformando a cópia em original. A segunda obra exposta foi uma reprodução ampliada de sua Monalisa de 1919 em que havia se apropriado de uma reprodução, tipo postal, do ícone de Da Vinci, pintado nela um cavanhaque e intitulado LHOOQ (cuja leitura das letras em francês significa algo como “ela está com fogo no rabo”). Desta vez, uma década depois da primeira blague, ele amplia e anota tratar-se de uma “réplica” na parte debaixo junto à sua assinatura. Ou seja, esta de 1930 seria a réplica e aquela anterior, já uma apropriação adulterada, tornava-se original. Sendo que a cópia é maior e ambas foram expostas lado a lado. Na primeira Monalisa Duchamp insere a reprodutibilidade e adultera a pintura clássica original; na segunda, ele empurra a reprodução, a partir do gesto poético do artista, para o campo da originalidade – mostrando que o que faz de algo original não é o virtuosismo ou a marca da pincelada autêntica, mas o gesto inventivo que transforma nossas formas de ver e nomear o que vemos. Cabe notar que Walter Benjamin viu esta exposição e fez referência a ela em uma carta escrita de Paris citada por Filipovic. Soma-se a isso uma anotação sua sobre Duchamp, que foi publicada postumamente nos anexos ao texto da Obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica [1], em que ele remete ao seu contato com a Caixa verde de 1934, em que Duchamp misturou notas escritas desde 1913 e reproduções fac-similadas de obras e referências ao Grande Vidro. Todo este momento da obra de Duchamp é uma grande reviravolta em torno da investigação e da experimentação sobre a reprodução técnica da imagem e o readymade. Segundo Benjamin, “Duchamp é um dos fenómenos mais interessantes da vanguarda francesa. Sua produção é pequena, mas sua influência não é pouca. (…) Sua teoria da arte (do valor artístico?) exemplificada (não explicada) por ele recentemente em uma caixa, ‘La Mariée mise à nu par ces Célibataires’, acarreta mais ou menos na seguinte consequência: assim que um objeto é visto por nós como uma obra de arte, ele tende a perder imediatamente este estatuto (artístico)” [2]. O filósofo percebe o quanto a questão por trás do gesto poético de Duchamp conspirava com a categoria convencional de arte, impondo sempre ao espectador a obrigação de uma resposta inventiva, fazendo do encontro com a “arte-não-arte” uma ativação de sua imaginação produtiva. Como Duchamp afirmaria anos depois, o coeficiente artístico de uma obra é a soma entre aquilo que o artista quis fazer e não conseguiu, mais aquilo que não pretendeu e surgiu (a partir do olhar ativo dos espectadores, da posteridade crítica). Mais duas coisas antes de terminar esta reflexão sobre reprodutibilidade. A primeira, já mencionada no artigo anterior, é o Museu Portátil de Duchamp, sua Boîte-en-Valise (1938-1942) em que ele monta uma “retrospectiva” de reproduções de suas obras desde as pinturas iniciais, em uma montagem cuidadosa dentro de uma caixa-estojo. Ele inclui aí três readymades, fazendo uma réplica “original” em miniatura da Fonte em porcelana, assumindo a sua autoria – o que até então era uma questão nebulosa e esquecida, quase três décadas depois. O gesto irónico de deslocar um objeto qualquer para o museu derivava naquele momento para a invenção de formas alternativas de expô-los, quando ele começava a ser assumido como arte. Mais uma vez Duchamp está reencenando sua questão de origem, anotada em 1913 – como fazer uma obra que não seja uma obra de arte. Por fim, cabe lembrar do “museu de reproduções” que Mario Pedrosa queria fazer em Brasilia na época da construção da cidade. A proposta consta de uma carta escrita por Pedrosa para Niemeyer em 1958 em que ele o apresenta enquanto “um museu de cópias, reproduções fotográficas, moldagens de toda espécie, maquetes, etc”. Como apontam Sabrina Sant’anna e Marcelo Vasconcelos em artigo recente sobre este projeto de Pedrosa, a exposição das cópias seria acompanhada “de projeções de slides e textos explicativos gravados, as exposições de ciclos históricos estariam também integradas a uma filmoteca e cursos de iniciação artística”. Ou seja, não se tratava apenas de rebaixar a arte a sua dimensão reprodutiva, mas de se pensar um museu em uma capital periférica diante de sua missão pedagógica, visando não só uma formação estética ampliada como também a própria formação artística, tendo em vista a relação entre os espaços expositivos e os espaços de ateliê e de discussão crítica. Esta estratégia de fazer uma exposição de reproduções era parecida com aquela que estava programada para a exposição de inauguração do MAM-SP e que foi abortada por conta dos custos elevados das reproduções. Há aí também uma reverberação do museu imaginário de André Malraux, cujo desenvolvimento da ideia começa próxima de Benjamin, ainda nos anos 1930 e vai se desdobrando em uma direção mais metafísica e menos materialista ao longo das décadas seguintes. Independentemente disso, o ponto de partida de Malraux era de que haveria, depois de todo desenvolvimento tecnológico, uma relação intrínseca entre arte e reprodutibilidade. Nas suas palavras, a história da arte, depois da reprodutibilidade técnica, seria a história do que poderia ser fotografado. Através da fotografia, pode-se tanto buscar uma reprodução fiel ao original como também produzir recortes de detalhes que interessam integrar dentro de uma montagem curatorial construída a partir de uma narrativa histórica e estética específicas. Cabe também destacar o modo como o atravessamento da fotografia com a pintura foi determinante na produção de tantos artistas desde os anos 1960, com destaque para Richter e Warhol. No limite inventivo e crítico desta prática de apropriação, nascida com Duchamp embaralhando original e cópia, arte e não-arte, encontra-se a experiência godardiana de uma história do cinema, história no plural, toda ela escrita na mesa de montagem articulando fragmentos de filmes, textos, pensamentos, justaposições, ruídos, vazios. História(s) do cinema como cinema, como montagem, como crítica, como curadoria. Todas estas questões estão em aberto, com várias bifurcações possíveis, mas diante dos museus imaginários que se multiplicam e se globalizam temos que ser mais originais ao lidar com a reprodução e com a manipulação de imagens digitais na contramão de um mercado que só se interessa pela obra única e pela escassez.
Luiz Camillo Osorio
Notas [1] Importante destacar aqui a edição recente do texto de Benjamin “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, com tradução de Gabriel V. Silva e organização e seleção de fragmentos de Marcio Seligmann-Silva publicado pela L&PM. Nesta nova edição, além de apontadas as variações entre as três versões do texto benjaminiano, são incorporados fragmentos, anotações e uma carta que dão uma nova perspectiva do contexto e das inquietações conceituais que perpassavam o autor naquela altura dos anos 1930.
Elena Filipovic – The apparently marginal activities of Marcel Duchamp, Massachusets, MIT Press, 2016.
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[Este artigo foi originalmente publicado no website do Prémio PIPA a 7 de Julho de 2022]
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