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LA SPÉCIALISATION DE LA SENSIBILITÉ À L ÉTAT DE MATIÈRE PREMIÈRE EN SENSIBILITÉ PICTURALE STABILISÉEEMANUEL CAMEIRA2009-05-31Não por acaso é preciso dizer azul em vez de dizer pantera (1). Lembro esse exercício espiritual de Cesariny, como me surpreendeu, e revejo-o em metáfora de duplo sentido, simbólico pois claro, mas na alçada de uma linguagem que também serviu para abrir caminhos. Haverá mesmo na viagem que fiz por Klein um interesse além dessa mística do monocromo (2), igualmente sensível a outra marca do artista, o seu modo de expor. De resto, até começando por reter o exemplo de um inspirador Courbet, no que o Pavillon du réalisme (1855) teve de moderno e visionário acto de consciência e intervenção, para depois chegar ao sentido de não somente fazer a obra como de perceber que o modo de a expor altera o nosso olhar sobre ela e, portanto, o seu objectivo. É do século XX, e logo no âmbito das vanguardas russas, a progressiva valorização do sítio onde a obra se encontra. O entendimento de um contexto expositivo transfigurador identifica-se por exemplo na carga sagrada, ritualista e transcendente do espaço suprematista de Malevich, onde o vazio e a tela conhecem idêntica importância, ou dá-se a ver tanto nas configurações que chão, tecto e parede adquirem nas salas construtivistas de Tatlin quanto na conotação cenográfica do “Proun” de El Lissitzky. Reconhecendo isto, muita da acção dos próprios movimentos artísticos, conseguem-se pistas de leitura das mudanças desde aí sofridas pelos espaços expositivos. Consciente destas remissões deu-se o meu encontro com o acontecimento “Le Vide”, do francês Yves Klein (1928-1962), ocorrido precisamente no dia do seu trigésimo aniversário, a 28 de Abril de 1958, na Galerie Iris Clert, Paris. Eis bem outro caso icónico, questionando à época formas ditas clássicas de exposição. Supondo que a exposição justapõe sempre evento e lugar, e aqui me debruço sobre essa concepção moderna que, desde o século XVIII, torna os objectos artísticos alvo de uma apresentação publicamente orientada, cabe afirmar que é pelo respectivo display das obras que se constroem e alargam os seus sentidos, estruturando-se as experiências dos espectadores que as vêem. Mas frente à autoridade simbólica de um contexto que reclama da arte tudo aquilo que mostra, efeito de museu cunhado na reflexão de Svetlana Alpers (3) e aliás herdeiro dos vários tipos de questionamento dirigidos por certos artistas à exposição enquanto meio. Foi assim com Duchamp, com um carismático urinol “Fonte” (1917) a servir de impulso para interrogar o estatuto do que é arte e sob que condições. Atitude quer dadaísta quer surrealista, demarcando-se da neutralidade e transparência próprias da exposição. Impõe-se recordar a I Exposição Internacional do Surrealismo (1938), ocorrida na Galerie des Beaux-Arts, Paris, já não mera mostra de quadros pendurados. Falar de fantasiosas salas, iluminadas por braseiras e archotes, da instalação que Dalí levou ao pátio, interpelando os visitantes antes de entrarem na galeria, ou da ampla gruta criada por Duchamp, de cujo tecto pendiam 1200 sacos de carvão e em que o solo se revestia de folhas mortas, misturando rosas e nenúfares, significa colocar a ênfase num cenário nada alheio ou exterior às obras. À consciência da composição espacial incrementada pelos surrealistas podem contrapor-se os trabalhos minimais e conceptuais das décadas de 60 e 70, favorecendo esse local etéreo, idealmente modernista (de paredes brancas, chão direito...) que ainda hoje constitui a ideologia dominante dos espaços expositivos. Ora, por intermédio de uma obra de especulação metafísica, menos flagrante nos parceiros do Nouveau Réalisme, fica a relevância de la spécialisation de la sensibilité à l’état de matière première en sensibilité picturale stabilisée. Ou “Le Vide”, como se prefira. Espaço «vazio» onde a obra existe sem qualquer tipo de convencional matéria, apenas em função do pensamento autoral de Klein. Comecemos então junto dele, desse movimento que, em 1960, Pierre Restany classificara dos novos realistas, espécie de paralelo europeu da «Pop-Art», buscando outro método de comunicação e percepção do sensível. Klein terá elegido o céu (e o mar), e numa pintura como “IKB 103” (1956), revestida de uma densa camada de cor, o International Klein Blue, prefigura-se uma qualidade Zen que instala simultaneamente na tela o vazio e a representação de um ilimitado espaço, infinitamente rico. O sentimento quase religioso transmitido num impenetrável e concentrado azul ou no contraste cromático dos derradeiros “Retratos Relevo” encontra formulação afim no significado simbólico de “Le Vide”. Desafiando a habitual lógica de construção do espaço expositivo, era a fruir de uma imaterialidade emoldurada que esse ritual incitava. Nisso de pintar de branco todo o interior da exígua Galerie Iris Clert, retirando-lhe o mobiliário, inclusive o telefone, de as janelas pintadas a azul ultramarino impedirem que da rua se visse o que lá dentro acontecia, e bebiam-se cocktails que tinham a particularidade de tingir de azul a urina dos visitantes, acaba chamando-se o espectador a completar, a participar (n)a obra, devendo-se frisar a dependência que esta carrega do meio circundante. À vernissage de “Le Vide” acorreram cerca de 3000 pessoas, pese embora nada vendo. Vitrinas vazias ou imagens ocultas que provocantemente o artista garantia decorrerem do seu processo mental, isso a fim de, passados os guardas e as cortinas azuis da entrada, mergulhar os visitantes num ambiente de inusitada dimensão, solene, imaculado, silencioso, repleto de sombras, de possibilidades. De sensibilidade estética, habilitada a influenciar os estados perceptivos, corporais e emocionais, do espectador - a verdade é que a obra repousava na relação sensorial que com ele estabelecia tanto quanto na intelectualização dessa relação. Importa acrescentar duas particularidades constitutivas desta exposição de autor. O dispositivo de controlo do público, organizado em pequenos grupos, com Klein a insistir numa visita bastante breve, de dois a três minutos, temidas que eram manifestações iconoclastas associadas à frustração de quem eventualmente considerasse pouco autêntica ou fraudulenta a instalação-performance (coube à polícia local, no exterior, dispersar a multidão), e a duração da mesma, ultrapassando os oito dias inicialmente previstos, decisão justificada pela enorme afluência de gente ao n.º 3 da Rue des Beaux-Arts. Nestes termos, pois, de atracção, recusa visceral ou espanto perante a desmaterialização da obra numa singular atmosfera pictórica sobrepõem-se espaço expositivo (menos parede que conceito) e objecto em exposição. Nota-se o primado da ideia, próximo de um conceptualismo avant la lettre. E que, precedendo Jannis Kounellis (“Dodici Cavalli Livi”, 1969) ou Vito Acconci (“Seedbed”, 1972), as coisas não se expõem, acontecem. Dissecar “Le Vide” presta-se então a mobilizar uma das várias elucubrações de Daniel Buren acerca da doutrina porventura totalitária, idealista e abstracta do cubo branco: so the questioning work has an obligation to employ all possible means, including subversion, to reveal the false discretion of these depersonalized architectures and to make them emerge from their false neutrality (4). Desde que comparada à nova-iorquina “The Store” de Claes Oldenburg (1961), criticando o espaço da galeria segundo uma perspectiva pop, o gesto de Klein, mais elitista e poético, exacerba os tiques do white cube. Não sem o abalar, porque inclusivamente intervindo nos elementos arquitectónicos exteriores, as janelas, a fachada, os libertou de uma neutralidade característica. A incumbência da configuração de um espaço leva Klein, o prestidigitador, a coincidir com essa invenção cara ao século passado, de que o artista é o próprio curador e a exposição uma obra de arte. Emanuel Cameira NOTAS (1) Cesariny, Mário, Manual de Prestidigitação, Lisboa, Assírio e Alvim, 1981, p. 140. (2) De Duve, Thierry, “Yves Klein ou le marchand mort”, in Cousus de fil d’or – Beuys, Warhol, Klein, Duchamp, Dijon, Art édition, 1990, p. 57. (3) Alpers, Svetlana, “The museum as a way of seeing”, in Karp, Ivan e Lavine, Steven D. (eds.), Exhibiting cultures, Washington DC, Smithsonian Institution Press, 1991, p. 26. (4) Buren, Daniel (1975), “Fonction de l’architecture: notes sur le travail par rapport aux lieux où il s’inscrit, prises entre 1967 et 1975 et don’t certaines sont spécialement récapitulées ici”, in Greenberg, Reesa, Ferguson, Bruce W. e Nairne, Sandy, Thinking about exhibitions, London / New York, Routledge, 1996, p. 318. |