JOÃO ONOFRE - ONCE IN A LIFETIME [REPEAT] | CARLA CARBONE

JOÃO ONOFRE - ONCE IN A LIFETIME [REPEAT]

CARLA CARBONE

2019-06-02

No vídeo “N’en finit plus”, de 2011, uma jovem adolescente canta, à capela, numa antiga cela subterrânea da Inquisição. Este vídeo lembra-nos um vídeo clip de uma qualquer estação pop, de conteúdo sombrio e lúgubre, e liga-nos também a outros vídeos soturnos do artista, pelo modo triste com que se constroem os seus personagens; como pode observar-se em “I see a Darkness”, de 2007, ou em "Leveling a spirit level in free fall fear”, de 2009, ou ainda em "VOX", de 2015. Tendo, em comum, a iminência de um acontecimento trágico, pela vulnerabilidade expressa dos personagens nos vídeos.

Testam-se os limites. Uma outra peça de Onofre, “Box sized Die”, é uma escultura em aço, que se encontra colocada no exterior do edifício da Culturgest. A peça é uma apropriação de uma escultura minimalista de Tony Smith, chamada “Die” (1962), mas desta vez, insonorizada, a fim de serem inseridos, no seu interior, músicos de uma banda de death metal, os Holocausto Canibal, que, ofegantes, terão de tocar dentro do cubo até perderem a total capacidade para respirar.

Os exemplos sucedem-se: canções pop tocam em gira-discos sobre plintos de formas reducionistas, (canções de Adelaide Ferreira); mágicos com roupas circenses, realizam números de ilusionismo, como por exemplo, fazer levitar uma senhora, sob fundo de cetim, no espaço ínfimo do atelier do artista. A fila de fotografias onde se encontram coveiros, em poses de fotografia de grupo, sem a espectacularidade que nos acostumámos a ver, dos trejeitos e poses fotográficas, criadas propositadamente, para as redes sociais, também causam estranheza, pelo total despojamento de artificialismos.

Tudo isto se apresenta como um jogo de montagens a cru. Tudo se afigura como ávido de contrastes, de assemblages, uma justaposição assente numa dialéctica dos opostos.

Aparentemente esta justaposição parece conduzir o visitante a um sentimento contraditório, envolto numa certa confusão. Mas na realidade, o que o artista passa a fazer é a clarificar, a iluminar o caminho para novas significações. Mostrar, pôr a nu, diferentes visões dos fenómenos sociais, diferentes maneiras de ver a arte, a cultura.

Fazendo uma analogia com as foto-montagens dadaístas, João Onofre vai contrapondo elementos da cultura popular com elementos próprios da linguagem dita, elevada, das galerias.

Se remontarmos aos tempos idos do surrealismo e do dadaísmo, alguns artistas e poetas recorriam à justaposição de imagens com outras imagens, ou a fragmentos de fotografias com desenhos, ou ainda a imagens com textos, por forma a se afastarem da mera representação e da cópia, e tomarem as rédeas do “pensamento puro”, ou, como diria Breton, quando se referia à foto-montagem, para captarem a “verdadeira fotografia do pensamento”.

A canção popular portuguesa: “Dava tudo para te ter aqui, ao pé de mim, outra vez”, de Adelaide Ferreira, vai tocando no gira-discos, alheia aos austeros e cerimoniosos plintos, que a sustém. Sem querer, esta justaposição conduz a obra de João Onofre a um estágio de clarividência, e debate, sobre o estado da arte contemporânea. Parece despertar uma urgência, em questionar os seus princípios e fundamentos. Assim, faz-se da arte um lugar de debate, onde a visão “selvagem das coisas” é, afinal, boa, e libertadora. Os cálculos da razão, a que Breton chamava Bourgeois Reason, constituem, ainda, em entraves para novos caminhos e novas perspectivas para a arte.

O carácter exploratório e experimental de Onofre aproxima-nos da realidade e do quotidiano. Ao contrário da mera recreação que afasta o fruidor da realidade, e da própria vida. Assim, na exposição do artista Onofre, justapõem-se essas duas realidades. Com a ajuda da música, os diferentes registos relembram-nos Cage, quando afirmava que “tudo era música”. Para melhor entender Onofre, talvez devêssemos dizer então que tudo pode ser arte. E é nesse perímetro, nesse intervalo preciso, que Onofre parece deixar entrar pequenas partes da vida, pequenos vestígios do quotidiano. E é por isso, talvez, que Roy Lichtenstein também deixou transparecer, nos seus quadros, pequenos rasgos do quotidiano, pequenos objectos do dia a dia, como figuras de "Patos Donalds" ou peças de vestuário corriqueiras.

Carla Carbone
Estudou Desenho no Ar.co e Design de Equipamento na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Completou o Mestrado em Ensino das Artes Visuais. Escreve sobre Design desde 1999, primeiro no Semanário O Independente, depois em edições como o Anuário de Design, revista arq.a, DIF, Parq. Algumas participações em edições como a FRAME, Diário Digital, Wrongwrong, e na coleção de designers portugueses, editada pelo jornal Público. Colaborou com ilustrações para o Fanzine Flanzine e revista Gerador.

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