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ARTE CONTEMPORÂNEA NOS CAMARÕESMARTA MESTRE2009-03-24FUI LÁ VISITAR ARTISTAS... Viajar pelos Camarões é arquivar imagens que simultaneamente deslumbram e crispam o olhar, porque jamais a “justa medida” da nossa moldura europeia, aquela que Winckelmann encontrou na simplicidade e na nobreza das ruínas gregas (passando a circunscrever os limites futuros da apreciação estética), se ajusta aos quadros que temos pela frente. Localizado no Golfo da Guiné, mesmo no centro de África, entre o Congo e o Gabão, a Sul, e a Nigéria, a Norte, o país é marcado pelo mar, o deserto, e o clima equatorial, o que contribui para aquilo que os roteiros turísticos caracterizam como: “uma África em concentrado”, onde 280 línguas correspondem ao mesmo número de etnias. Considerado o país mais corrupto do mundo, explorado intensamente pelas multinacionais, delapidado nos seus recursos naturais, detentor de uma taxa de HIV alarmante, e uma descredibilização generalizada no poder político, não deixamos, no entanto, de sentir o frenesim necessário para a mudança. Apesar da contribuição que os Camarões deu para o fim dos colonialismos nos anos 60 (lideres, grupos políticos, lutas, mártires, etc.) os camaroneses têm ainda pela frente a segunda etapa da independência, contra o governo ditador de Paul Biya. UM PÉ DENTRO E UM PÉ FORA Uma característica recente na prática profissional dos artistas em África é a reunião simultânea das competências dos artesãos com o novo vocabulário da arte contemporânea. As competências profissionais aplicam-se em simultâneo nas fronteiras do institucional e do quotidiano, da arte profissional e da arte não-profissional. Esta simultaneidade leva-nos a estabelecer uma analogia com os homens da etnia bamiléké que, para além do “emprego fixo” no mercado, têm ainda a render táxis, fotocopiadoras, terreno de cultivo, ou negócios de animais. A condição profissional dos artistas assenta igualmente nesta versatilidade: é-se “artesão” e “artista contemporâneo africano” e na maior parte das vezes, a obra acusa o compromisso inevitável de um “portfolio” misto. Entre as vendas que asseguram a sobrevivência e a linguagem independente que ensaia novos territórios. Nos Camarões, o circuito da arte é pequeno. Os contextos artísticos de Douala, Bonendale, Bandjoun Station e Yaoundé não bastam para cumprir os palcos e as agendas curatoriais da arte contemporânea internacional. Por isso os programadores e os artistas circulam no exterior, entre Dakar e Paris, Amesterdão e Londres, Nova Iorque ou Joanesburgo, e organizam iniciativas que promovam a vinda de gente de fora, e a mobilização apoios ocidentais ao desenvolvimento. Os artistas da diáspora, por outro lado, desempenham um papel fundamental na projecção do país no mapa da arte contemporânea. Quando Samuel Fosso, Barthélèmy Toguo, Goody Leye ou Pascale Marthine Tayou expõem no Palais de Tokyo, no Moderna Musset, no Baltic, na Feira de Miami, na Serpentine Gallery, ou na Bienal de São Paulo, os curadores e galeristas internacionais prolongam as pesquisas no terreno, à procura de novos “toguos”, “fossos”, “tayous”, com a esperança de repetir o mediático efeito “áfrica”. Com grande expectativa, porém, surgem investimentos no país, por parte dos artistas da diáspora. Nos últimos cinco anos têm aparecido espaços e projectos de intervenção social e cultural dinamizados por Barthélèmy Toguo, Goody Leye ou Joel Mpah Doph. Como Ulisses que volta a Ítaca, os artistas regressam depois da “viagem”, restabelecem laços e constroem casas. O traço comum é o facto de falarem do seu país como uma realidade vista simultaneamente de fora e de dentro, e de si mesmos como pertencentes ali e a muitos lugares, sintoma do alargamento das redes de construção da identidade. Como Ulisses que chega, e Argos o cão reconhece, assim são os artistas, no jogo dos vários papéis da diáspora – migrantes, emigrantes, imigrantes – simultaneamente Ulisses e o cão. A TERRA PROMETIDA DE BARTHÉLEMY TOGUO Em 2001, o artista camaronês Barthélèmy Toguo apresentou a instalação “Terre Promise”, uma pista de aviões inundada de pedras e lixo que perturbavam as aterragens e as descolagens. O título ridicularizava o Ocidente como imagem da realização individual e do sucesso, jamais Terra Prometida. Nesta instalação, como numa importante parte da sua obra (a série “Transit”, p.ex.), Toguo expressa o constrangimento à mobilidade de sujeitos, e o desenraizamento do tema africano relativamente à história europeia. “Terre Promise” pode ser lida como a encenação satírica da “Jerusalém” da diáspora e dos artistas: uma alusão à “via sacra” da burocracia, dos vistos, dos papéis, das fronteiras que dividem, da corrupção entranhada nos hábitos. Para um europeu, chegar aos Camarões torna-se um idêntico calvário, mas numa outra ordem de etapas. Neste caso estamos mais perto da “Terre Promise” que Toguo propôs na Bienal de São Tomé e Príncipe, em 2008. Tratou-se do mesmo dispositivo, mas completamente coberto de uma película fina e brilhante de alumínio. Ou seja, apesar dos semelhantes obstáculos que têm início logo nas embaixadas da Europa, há um “brilho” na vontade infantil, exótica, e tendencialmente ocidental, por África. Barthélèmy Toguo, o artista camaronês mais internacional, é considerado um dos mais importantes artistas franceses da contemporaneidade (devido à sua dupla nacionalidade). Com um percurso artístico notável revelado em projectos e exposições ímpares no contexto da arte contemporânea (“África Remix”, Baltic, Palais de Tokyo, Drawing Center, Biennale de Lyon, Bienal de Guangzhou, Migrateurs, La Criée, etc.), o seu trabalho explora a multiplicidade de suportes e média (performance, pintura, instalação, cerâmica, escultura, etc.) em torno dos efeitos estéticos da montagem. A beleza e o sofrimento têm atravessado com maior persistência a pesquisa de Barthélèmy Toguo (com especial atenção para a singularidade das performances). A reflexão crítica sobre as condições de produção e difusão da arte contemporânea africana é outro plano capital de Barthélèmy Toguo. Foi neste sentido, que recusou o convite que lhe foi endereçado por Simon Njami e Fernando Alvim para integrar o Pavilhão Africano da 52ª Bienal de Veneza, reclamando um distanciamento ético face ao projecto do pavilhão. BANDJOUN STATION: INVERTER PAPÉIS Vamos a caminho de Bandjoun Station no Oeste camaronês, onde se situa o projecto cultural de Barthélèmy Toguo. Ainda na estrada internacional avista-se o edifício em altura, no meio da vegetação densa dos planaltos. Basta perguntar pela “maison à étages”, analogia imprevista com Petit à Petit, um filme de Jean Rouch, em que um dos personagens decide construir um verdadeiro “building” nas margens do rio Níger. O edifício principal de Bandjoun Station é sincrético na composição dos elementos arquitectónicos, escultóricos e decorativos, já que integra elementos da cultura local bamiléké (a decoração animalista da fachada, a cobertura metálica), formas de construção contemporâneas (o betão, o cimento, os revestimentos industriais), uma aparência bulding up permanente, e uma forte marca autoral, através da introdução do bestiário de B. Toguo. Signos animais e vegetalistas a par de elementos apotropáicos que protegem e vigiam a “casa do mundo”. O projecto de Bandjoun Station é composto de quatro valências: “House”, “Visual Arts”, “Agriculture Project” e “Educational Project”, e promove as vertentes pedagógica, cultural, agrícola, médica, formativa. Em entrevista, B. Toguo refere: “É principalmente o Ocidente que expõe a criação africana contemporânea e que detém um olhar institucional sobre a produção”, e acrescenta que Bandjoun Station pretende por isso “ser uma resposta à falta de projectos culturais no continente”. Os sete hectares de terreno na paisagem de Bandjoun constituem vertente agrícola do projecto artístico. Pretendem tornar-se laboratórios de integração ambiental, através da cultura intensiva do café, permitindo a manutenção de uma agricultura autóctone, e de uma ligação da comunidade à terra. Para B. Toguo não se trata de ter mais uns hectares para plantar, é preciso promover a consciência da riqueza natural dos Camarões e o seu usufruto pelas populações: “um acto crítico que amplifica o acto artístico e denuncia aquilo de que Senghor falava, a deteriorização das condições de troca onde os preços de exportação impostos pelo Ocidente penalizam e empobrecem os agricultores do Sul”. Uma questão igualmente central no contexto cultural da região é a ampliação do património. Até agora restrito aos acervos históricos das chefferies, um novo conjunto de trabalhos contemporâneos adquiridos por B. Toguo irá dinamizar novas relações com os públicos, especialmente o público escolar. Obras visuais e sonoras de Benoît Fossouo (1), Roni Horn, Zwelethu Mthetwa, Fela Anikulaputi, Laurie Anderson, Orlan, Joel Mpah Dooh, Souleymane Sissé, Moreira, Cuco Zuarez, Baltazar Torres, Philippe Starck, Alpha Blondy, Marcel Dzama, Marlise Bété, Peter Doïg, Carolee Schneemann, Miriam Makeba, Joachen Gerz, Alpha Blondy, Peter Rusam, Timo Dentler, entre outros, constituirão uma base que será ampliada e exposta regularmente. A energia de Toguo e dos seus colaboradores é inesgotável para pôr de pé Bandjoun Station. Ali trabalho nunca pára, até porque a noite cai muito cedo nos altos planatos bamiléké. Ouve-se música do outro lado da estrada. É makossa que vem do bar de Blanco, o preto mais branco de Bandjoun. Não há cerveja nem gelada nem fria. Serve-se morna e em garrafas de litro. Estamos no Oeste dos Camarões, e nem sempre há corrente eléctrica que refrigere as arcas frigoríficas. NAS MARGENS DO RIO WOURRI…A RESIDÊNCIA MTN FOUNDATION Bonandale fica a 10 km de Douala e não é fácil de encontrar. Por todo o país, as estradas asfaltadas “do tempo dos franceses” esboroam-se de dia para dia, à sombra da corrupção insistente da polícia. Para encontrar a residência MTN, em Bonendale, é preciso perguntar pela “village d’artistes” e sacrificar a suspensão do carro, antes de chegar às margens do Rio Wourri. Foi Joël Mpah Dooh o primeiro a sair do caos de Douala para se “fixar num local mais próximo da natureza”. Actualmente, para além de Joël, também Goody Leye (que dinamiza o projecto “Art Bakery”), Louise Epée, Salifou Lindou, Jules Wokam vieram e fixaram-se. A “village d’artistes” é uma rede informal de colaboração que integra o trabalho de cada artista e os seus projectos culturais. “A vinda dos artistas para este local foi uma resposta ética e política, em recusa com as formas de trabalhar e habitar a cidade”, diz-nos Joël enquanto nos mostra os espaços da residência MTN Foundation, projecto que dinamiza e que é apoiado pelo grupo MTN, uma multinacional de telecomunicações com presença fortíssima no Médio Oriente e no continente africano, da Costa do Marfim até à África do Sul. A funcionar desde 2006, a residência MTN promove uma interacção entre os artistas e o meio geográfico, procurando as formas de produção necessárias para a concretização dos projectos individuais. Proporciona ainda a exposição de cada projecto em Douala, contribuindo para a promoção da arte emergente nos Camarões. Durante a visita que realizámos aos espaços surge a oportunidade de perguntar qual a opinião de Joël, artista que começou nos anos 90, sobre a inserção dos jovens artistas no circuito africano e internacional, Dakar, Joanesburgo, Cairo, Luanda, São Paulo, EUA, China? Joël Mpah Dooh parece não estar interessado, e justifica: “Tivemos a Revue Noire, nos anos 90, que lançou nomes no mercado. Foi uma euforia que transformou o modo como nos sentíamos artistas, e artistas africanos, e agora andamos todos a lamentar a necessidade de escolas especializadas que reforcem a formação, porque durante anos andámos somente interessados na resposta ao mercado”. É a partir desta reflexão, que o projecto residência MTN Foundation quer desenvolver a vertente formativa, e preencher as lacunas no ensino camaronês que não dispõe de nenhuma formação superior na área. VIAGEM AOS CONFINS DE UMA CIDADE... DOUALA Os 10 km que distanciam Bonendale e Douala fazem-se em marcha muito lenta e incerta. Os carros tentam evitar os grandes buracos de uma estrada polvilhada de águas estagnadas e adensam-se à entrada da cidade onde está “La Nouvelle Liberté”, a escultura de doze metros do artista Joseph Sumégné. Ainda que uma analogia irónica aproxime esta escultura à Estátua da Liberdade, ou que a maioria das pessoas viaje até Douala para singrar na vida, a cidade não é mais que um “el-dourado” negro de miséria, doenças, e formas de vida primárias, semelhantes às que Louis Ferdinand Céline relata no início do séc. XX. O escritor francês descreve Douala como a enferma “Fort Gono” em Voyage au Bout de la Nuit, cidade-metáfora de doenças venéreas, delírios e encontros sexuais entre brancos e mulheres pretas. Para lá deste quadro, Douala é uma cidade extraordinariamente viva, palco de permanentes mutações espaciais, sociais, relacionais, ou políticas. À semelhança das suas congéneres africanas, a cidade formal e a cidade informal coabitam, num movimento que permanentemente arruma e desarruma as etnias, culturas, nacionalidades, e religiões. São dois milhões e meio de pessoas, de toda a parte do país e do continente, e que habitam em Akwa, Bonanjo, Bali, Bonaberi, Denver-Santa Barbara, La Zone Bassa, New Bell... cento e vinte bairros que formam a malha urbana da cidade. Douala é um dos tipos de cidades do hemisfério Sul de que fala Rem Koolhas, a propor novos modelos urbanísticos, e novas formas de organização do sector informal. Cidade em trânsito nas suas formas e conteúdos, permite-nos experienciar a vida num mundo deslocado, um “cosmopolitismo vernacular” (Homi Bhabha), dentro e fora dos Camarões e de África. A CIDADE COMO LABORATÓRIO: DOUAL’ART É a partir da cidade, e muito particularmente do seu entendimento como um organismo vivo, que foi pensado o projecto Doual’Art, centro de arte contemporânea, que tem vindo a centralizar boa parte da programação cultural e artística da cidade, e que se define como um laboratório de pesquisa sobre as questões urbanas. É Didier Schaub, director artístico, que nos recebe e mostra os espaços, enquanto fala da história da organização, que dirige com Marilyn Douala Bell: “O espaço era um antigo cinema que recuperámos em 1991, e hoje é uma galeria que acolhe várias iniciativas: exposições, workshops, actividades pedagógicas, acções de formação, etc”. Em exposição está uma instalação do artista marroquino Younès Rahmoun, com curadoria de Abdellah Karroum, e a próxima, da dupla francesa de artistas Art Orienté Objet. O tipo de projectos da organização Doual’Art relaciona-se com “engenharia social”, centrando as acções nos bairros de Douala, e estabelecendo projectos com as diversas comunidades. “SUD, Salon Urbain de Douala” é um dos projectos que decorre da experiência continuada nos bairros da cidade, e consiste numa apresentação bienal de arte pública, precedida por um encontro internacional de curadores: Arts et Urbis. Em 2009, nomes como Arno van Roosmalen, Ngoné Fall, Simon Njami, Jérôme Sans, Edgar Pieterse, ou o artista camaronês Pascale Marthine Tayou debaterão a cidade e as suas relações com a água, conceito base do SUD 2010. Um dos artistas que realizará um projecto para 2010 é Hervé Yamguem, “artista da casa”, que representa a jovem geração de artistas camaroneses. “Mots Écrits”, título do projecto de Yamguem será uma colaboração com os jovens rappers do bairro de New Bell para apresentar à cidade e está em fase de produção. IT’S NEW – BELL, CAMARADE!! New Bell é o bairro com o maior número de imigrantes da cidade, e também o mais conflituoso. Mulçumanos rezam orientados para Meca ao lado de grupos de homens em festa, semi-embriagados. As ruas e os cruzamentos são ocupadas ao milímetro por grupos de jovens que aguardam clientes para transportar, e fazer o dinheiro do dia. Ouve-se o “Pst, Pst” na boca dos rapazes das moto-taxi e das “pousse-pousse”, carrinhos de mão que transportam mercadorias de um lado para o outro. Uma viagem de mota custa 50 cêntimos, e pode ser negociada segundo a distância. Duas divisões que servem também de atelier aberto ao bairro de New Bell fazem a casa de Hervé Yamguem. Os ritmos dos jovens rappers inspiram Yamguem a trabalhar o tema proposto: “C’est le sauvetage./ Ils fanam de gauche à droite./ Le combat est rude./ L’eau est un miroir du monde”. Moctomoflar, rapper que colabora com o artista explica: “A água aqui no bairro é muito preciosa e por isso há conflitos entre os muçulmanos que gastam água nas orações, e as mamãs desesperadas com falta de água para os filhos”. O objectivo do projecto “Mots Écrits” é a construção de um grande mural colectivo que integre o processo de trabalho desenvolvido ao longo dos meses para integrar o património edificado da cidade: palavras e imagens a falar de New Bell. + Durante o mês em que visitei os Camarões assinalaram-se vários acontecimentos a nível mundial nos meios de comunicação. Em África, na República Democrática do Congo, os conflitos agudizavam-se, anunciou-se a morte da sul-africana Miriam Makeba, cantora e activista dos direitos humanos; no Mundo, os governantes das potencias económicas mundiais reuniam-se para definir um plano estratégico contra a crise financeira, e Barak Obama ganhava as eleições norte-americanas. Esta breve agenda internacional, que apenas inclui as grandes manchetes dos dias, não deixa de ser sintomática da imagem de África que circula no espaço ocidental. Quer atentemos na natureza intrínseca de cada um dos acontecimentos enumerados, ou os tomemos como um todo, África é transmitida como uma imagem sobredeterminada. Quer isto dizer, um lugar capaz de plasmar a abundância dos discursos que circulam, os desígnios para o continente, e as situações de natureza traumática. Dentro e fora, na disseminada geografia que a designa, África tem sido um espaço de ambivalência que ainda polariza questões fundamentais como os direitos humanos, a igualdade racial, o apartheid, a subalternidade, a hibridização, a mixagem, a deslocação de pessoas e culturas. No decorrer das eleições norte-americanas, por exemplo, victória de Barack Obama voltou a ter no centro dos debates as questões da raça e da classe, dos Cultural Studies dos anos 1970. É sobre este aspecto demonstrativo a justeza das palavras do historiador indiano Sarat Maharaj, quando alerta para o facto de estarmos a cair num “espectáculo do discurso”. No plano artístico e cultural, temos vindo a assistir a um recente volte-face deste grande discurso, posto à prova por curadores e programadores de iniciativas de enorme visibilidade. Numa consciência firme de refundação dos princípios, promovem-se agora “pausas reflexivas”, e “vazios”, como é o caso da última edição da Bienal de São Paulo, mas igualmente o tom das propostas da 9ª Bienal de Sharjah, da 4ª Tate Triennial, e os debates e fóruns afectos a estes eventos, que colabora para testemunhar o estado crítico de um determinado sistema artístico e a sua inoperatividade. O que se prevê no futuro? É possível, tal como propõem os curadores e os artistas, “parar para reflectir”? Num futuro muito breve há que mobilizar linhas de orientação “desaceleradas” em espaços fora da macro-escala, trabalhar as especificidades (no caso do modelo das bienais), e convocar formas de criação e produção que amplifiquem a experiência. Ao que parece não estamos muito longe das estratégias “regionais” que temos vindo a referir, como Bandjoun Station, Doual’Art, a Residência MTN Foundation, etc., protagonizadas por artistas que triunfam na esfera internacional e que actuam na escala local, rasurando hiatos. Marta Mestre Historiadora de arte pela FCSH-UNL, mestre pela Université d’Avignon, actualmente é doutoranda na FCSH-UNL e EHESS (Paris). Programou a actividade cultural do Centro de Artes de Sines (2005-07) e tem trabalhado regularmente em crítica e curadoria de arte contemporânea. NOTAS (1)Benoît Fossouo é um artista outsider, praticamente desconhecido que habita e trabalha à saída de Bandjoun, na estrada internacional em direcção a Douala. O seu trabalho, espécie de “primitivismo autodidacta” (Jean-Loup Amselle) caracteriza-se por uma pesquisa de signos da natureza e da cultura baseada na caligrafia (inscrições a partir do seu nome, com as cores das decorações das casas bamiléké), na assemblage de objectos encontrados (com recurso à feitiçaria local), ou na criação de “lugares” (a “banca de venda de frutas”, o “ninho de ovos”, a “passagem secreta” para armazenar comida e material). Profeta africano, na senda de um Frédéric Bruly Bouabré (Costa do Marfim), ou Paulo Capela (Angola). |